Mundo de ficçãoIniciar sessãoRafael Almeida estava de pé diante do espelho da suíte nupcial, ajustando o nó da gravata cinza-perolada pela terceira vez. As mãos tremiam levemente, e ele odiava isso. Odiava parecer fraco, especialmente hoje. O terno feito sob medida caía perfeitamente no corpo — o alfaiate dos Monteiro era o melhor de São Paulo, afinal —, mas ele se sentia sufocado, como se a roupa fosse uma armadura que não podia tirar.
A suíte era enorme: cama king size com dossel, vista para o lago da fazenda, garrafas de champanhe Dom Pérignon no gelo que ele nem havia tocado. Isabella já tinha descido há meia hora, radiante, deixando um rastro de perfume caro pelo ar. “Te vejo no altar, amor”, dissera ela, beijando sua bochecha com lábios que pareciam sempre calculados. Amor. A palavra ecoava na cabeça dele como uma piada cruel. Ele amava Isabella? Talvez. No começo, sim. Ela era linda, inteligente, divertida nas festas certas. Fazia ele se sentir parte de algo maior, alguém que podia subir mais alto do que o pai jamais sonhara. Mas agora... agora tudo parecia uma transação. Ele era o preço pago para apagar as dívidas do pai. Dois milhões e meio em troca de uma vida inteira. Rafael sentou-se na beirada da cama, os cotovelos nos joelhos, a cabeça entre as mãos. Lembrou-se da noite anterior, na sala envidraçada. As vozes dos homens poderosos decidindo seu futuro como se ele fosse um ativo financeiro. O pai de Isabella — o sogro, agora — batendo na mesa com calma autoridade: “O rapaz entra na diretoria da holding agrícola. Limpa o nome. E vocês, senhores, recebem o pagamento integral hoje.” Vargas, o agiota, rindo com aquele charuto cubano na boca: “E se o noivo amarelar?” A resposta viera fria: “Não vai. Temos garantias.” Garantias. A casa da família. A mãe. Sofia. Deus, Sofia. Quando a viu chegar ontem, correndo pelo jardim com os olhos cheios de lágrimas e perguntas, ele quase desabou. Quase contou tudo, pediu para ela levá-lo embora dali. Mas não podia. Não enquanto aqueles homens estivessem por perto, não enquanto soubesse que um telefonema errado poderia colocar a irmã em perigo. E hoje, na cerimônia... quando ela se levantou. Por um segundo, o coração dele parou. Achou que ela ia falar. Ia gritar para todos ouvirem que aquilo era uma farsa, que ele estava sendo coagido. Parte dele queria isso — queria que o mundo soubesse, que a máscara caísse. Mas a outra parte, a que carregava o peso de proteger a família, gritou em silêncio: Não, mana. Por favor, não. Ele viu o segurança. Sabia que ela viu também. E quando ela sentou de novo, devagar, com o rosto pálido, Rafael sentiu uma facada no peito. Tinha falhado com ela. De novo. As alianças pesavam no bolso do paletó. Platina, gravadas com as iniciais deles. Isabella escolhera tudo: o design, as flores, a lista de convidados. Ele só assinava onde mandavam. Levantou-se, foi até a janela. Lá embaixo, os convidados já se reuniam sob a tenda branca. Viu Sofia na terceira fila, de azul, linda como sempre. Ao lado dela, um rapaz que ele não conhecia — alto, cabelo bagunçado, jaqueta de couro mesmo no calor. Eles seguravam as mãos. Quem era ele? Alguém importante? Alguém que podia ajudar? Por um instante, Rafael invejou aquele desconhecido. Invejou a liberdade de estar ali por escolha, não por obrigação. A porta bateu de leve. O padrinho, primo de Isabella, entrou sorrindo. — Hora, cara. Todo mundo te esperando. Rafael respirou fundo, colocou a máscara de noivo feliz. — Vamos. No altar, tudo passou como um borrão. As palavras do celebrante, os votos que ele repetiu sem sentir, o anel deslizando no dedo de Isabella. O beijo — rápido, sem paixão. Os aplausos. Mas quando passou pelo corredor e tocou o braço de Sofia, foi o único momento real do dia inteiro. A pele dela quente, o olhar dela dizendo tudo que ele não podia responder em voz alta. Eu te amo. Desculpa. Vou dar um jeito nisso. Um dia. Agora, na festa, ele circulava com Isabella pendurada no braço, sorrindo para fotos, aceitando parabéns de gente que mal conhecia. Bebia champanhe sem sentir o gosto. Assentia quando o sogro falava de “planos para o futuro na empresa”. Cumprimentava Vargas como se o homem não tivesse destruído sua família anos antes. Mas por dentro, Rafael planejava. Não ia ser para sempre. Não ia deixar que fosse. Ele tinha visto o olhar de Sofia. A determinação nova nos olhos dela. E aquele rapaz ao lado — talvez fosse aliado. Talvez houvesse uma saída. Na primeira oportunidade, quando Isabella estava distraída posando para mais fotos, Rafael se afastou. Foi até o bar, pediu um uísque puro. Olhou para o celular escondido no bolso interno — o que Isabella não sabia que ele ainda tinha. Abriu o W******p. A última mensagem de Sofia, de semanas atrás: “Rafa, por favor, responde.” Ele digitou rápido, antes que alguém visse: “Mana, eu te amo. Não desiste de mim. Vou achar um jeito de sair disso. Me espera.” Enviou. Apagou o histórico. Guardou o celular. E voltou para a festa, o sorriso falso de volta ao rosto. Mas agora havia uma faísca. Uma esperança pequena, perigosa. E Rafael Almeida, pela primeira vez em meses, sentiu que ainda podia lutar.






