Matteo e Isadora chegaram em casa depois do jantar, o silêncio entre eles pesado e cortante. Assim que entraram no saguão da mansão, Matteo fechou a porta atrás dela com força, fazendo o som ecoar pelo mármore frio. Ele bloqueou a saída, o corpo tenso, os olhos em brasa.— Você vai me dizer o que Don Fabrizio te falou. — A voz dele era baixa, mas cada palavra carregava a ameaça de explodir a qualquer momento.Isadora virou devagar, cruzando os braços, o queixo erguido.— Ele só repetiu as mesmas sujeiras sobre mim. Bastarda, que não deveria entrar na família Bianchi. Não é adequada. Nada novo.— Não era isso o que aquele verme estava sugerindo no jantar.— Na sua frente, claro. Quem respeita alguma mulher dentro desse meio?Os olhos de Matteo estreitaram. Ele não acreditava nem por um segundo, e a raiva por terem falado dela vibrava sob a superfície, mesmo que ele não dissesse nada.Ele avançou de repente, segurando o braço dela com firmeza — não o suficiente para machucar, mas deixan
POV: ISADORAO copo de cristal antigo rangia sob o pano de algodão, e Isadora limpava cada curva como se sua vida dependesse disso. Talvez dependesse. A superfície translúcida refletia seu rosto, mas distorcido — o que ela mais reconhecia nele. Um olho mais largo, a boca fina puxada para o lado errado, o nariz achatado pelo ângulo do vidro. Ela olhou por alguns segundos, hipnotizada. Às vezes, era assim que se sentia: um erro de forma, uma presença deslocada no lugar errado. Estava descalça. Os pés sujos pelo mármore lustroso da mansão Diniz. Suava sob a camisa branca de manga longa, que era dois números maiores e emprestada da lavanderia. Invisível — como sempre.— Senhorita Isadora, a senhora quer que eu leve os vinhos agora? — perguntou o novo ajudante, um adolescente com olhos gentis e a camisa amassada. Ela abriu a boca para agradecer, mas antes que qualquer som saísse, a governanta cruzou o salão com passos firmes.— Não a chame assim — disse, ríspida. — Ela não é da famíl
POV: ISADORAO céu ainda estava pálido quando Isadora empurrou a porta dos fundos com o ombro e pisou no jardim encharcado de orvalho. O ar da manhã tinha um gosto quase limpo — quase — porque nem mesmo o silêncio daquela hora conseguia apagar o gosto amargo que restara da noite anterior.Segurava uma caneca de café requentado. Tinha passado a noite virando na cama, espremida entre lençóis duros demais para consolar um coração pesado. Não chorou. Não tinha chorado. Mas havia algo dentro do peito que doía como se tivesse gritado até perder a voz.Sentou na mureta do jardim, com as pernas encolhidas sob o corpo e os olhos fixos no céu que clareava devagar. As palavras de Clarisse ainda martelavam sua cabeça. Agregada. Favor. Bastarda. Tantas formas diferentes de dizer que ela não pertencia àquele lugar — e mesmo assim, ali estava.Pensou na mãe. A biológica. A desconhecida. A mulher que, segundo os boatos, havia sido uma prostituta. Nunca teve uma imagem clara dela, só fragmentos invent
POV ISADORAO quarto era bonito demais. Janelas abertas, cortinas esvoaçando com o vento que trazia o cheiro salgado do mar. Lençóis brancos, colchão macio, uma poltrona azul ao canto e um armário de madeira escura entalhada com arabescos.Mas apesar da beleza, o silêncio era o que mais preenchia o espaço. Um silêncio denso. Suspenso. Quase perigoso.Isadora estava sentada na beirada da cama, as mãos espremendo a barra do casaco. Ainda não entendia por que estava ali. Por que Enzo a tinha trazido para aquele lugar afastado? Por que olhava para ela daquele jeito?Ele estava próximo, mas não muito. Encostado na parede, observando-a com uma calma que beirava o reverente. Como se tivesse medo de espantá-la.— Está tudo bem? — ele perguntou, a voz baixa, quebrando a tensão como quem quebra gelo com a ponta dos dedos.Ela hesitou, sem saber como responder. Não sabia se estava tudo bem. Não sabia de nada, na verdade. Só sentia o peito apertado, os batimentos fora de ritmo.— Você não precisa
POV ISADORAAs flores eram brancas.Cada arranjo cuidadosamente distribuído pela sala principal exalava um perfume doce e quase enjoativo. As taças de cristal, empilhadas em uma torre reluzente sobre a mesa de mármore, captavam a luz dourada do lustre e a multiplicavam em pequenos brilhos espalhados pelo ambiente. Parecia uma cena de celebração. Um evento de prestígio.Isadora entrou com passos contidos, a bandeja vazia presa entre os dedos, tentando esconder o leve tremor que ainda insistia em seu corpo. Dormira pouco — ou quase nada. A lembrança do toque de Enzo ainda ardia sob a pele, como se o corpo dela se recusasse a aceitar que tudo aquilo tivesse acabado sem uma palavra.Ele tinha sumido. E agora, ali, o mundo parecia seguir sem ela.— Pegue a bandeja com o champanhe. E sorria. — Clarisse apareceu ao lado, o sorriso polido colado ao rosto como uma máscara de porcelana. O tom, porém, era cortante. — Está pálida. Vai assustar os convidados.Isadora assentiu e caminhou até a mesa
POV ISADORAA caixa branca sobre a pia parecia uma bomba-relógio.A chuva batia nas telhas com uma cadência hipnótica e cruel, como se marcasse os segundos até o fim de tudo. O banheiro dos fundos era frio, pequeno e mal iluminado, mas oferecia a única privacidade que Isadora encontrara desde o anúncio devastador na noite anterior.Estava descalça, o cabelo preso às pressas e as mãos úmidas de suor, embora sentisse frio. O teste ainda estava virado, o visor contra a parede, como se ela quisesse fingir que não dependia daquilo. Que não fosse real.Se for negativo, eu respiro. Finjo que ontem nunca aconteceu. Esqueço que acreditei em alguém como Enzo.O coração martelava alto como se quisesse sair pela garganta.Se for positivo… eu…Ela não conseguiu terminar o pensamento. Só sabia que não estava pronta.O tempo pareceu parar quando estendeu a mão e virou o teste devagar, os olhos se ajustando ao visor digital ainda embaçado pela umidade do ambiente.Duas linhas.Nítidas. Cruéis. Inques
POV ISADORA— Isa, espera — a voz de Clara veio apressada, os passos atrás dela ecoando pelo corredor de mármore. — Seu pai não está sozinho. Tem… tem visita. Um Bianchi.Ela parou. Só por um instante. Só até o nome cortar o ar como uma lâmina afiada. Bianchi.O sangue pareceu congelar por um segundo. Ela parou, dando um passo para trás, o ar a sufocando. Enzo? Enzo estava aqui?Tentou conter a tremedeira. Seria bom vê-lo. Ele precisava saber e tomar as responsabilidades.— Mesmo assim — disse, com a voz mais firme do que esperava —, ele vai ouvir. Vai ter que ouvir.***O corredor até o escritório parecia mais longo naquela noite. Cada passo ecoava com um peso que não vinha só das solas dos pés. Vinha das palavras que carregava no peito. Das mágoas que vinham se acumulando há vinte anos.Ela não bateu. Abriu a porta.O escritório era como ela lembrava: madeira escura por todos os lados, cheiro de couro e tabaco, estante com livros que ninguém lia. O relógio de parede fazia tic-tac co
POV ISADORAO silêncio depois da tempestade era quase insuportável.As penas do travesseiro flutuavam no ar, girando lentamente como restos de uma batalha que ninguém viu. O abajur tombado piscava intermitente, espalhando uma luz trêmula sobre os livros jogados ao chão, alguns ainda abertos, outros rasgados na lombada. Havia cacos de vidro perto da porta. E, no centro de tudo, sentada com as pernas dobradas e os ombros encostados na parede, Isadora ainda segurava o teste de gravidez entre os dedos.As duas linhas ali pareciam zombar dela. Mas não havia mais lágrimas.O rosto estava seco. A boca firme. Os olhos duros como pedra. A dor já não queimava — agora, congelava.Se ninguém vai me proteger… então que me temam.Ela pensou em Matteo.Não no primo sedutor que todos murmuravam à sombra do nome Bianchi. Pensou no homem que a olhou no escritório sem dó, sem escárnio, sem pena. Apenas… a observou. Como quem assiste uma tragédia acontecer e espera, curioso, para ver se o que resta dos d