Mundo de ficçãoIniciar sessãoTerminamos o café em silêncio constrangedor. Olívia mastigava as frutas em formato de estrela com aquela calma irritante de quem assistiu a tudo e se divertiu. Eu tentava desaparecer na cadeira, ainda segurando o copo vazio como evidência do meu crime.
Quando Senhor Novak voltou para a cozinha, já completamente vestido com um novo terno, eu quis enfiar a cabeça dentro do forno e ligar no máximo.
Ele parou na entrada, me olhou, e disse com aquela voz controlada que era pior do que qualquer grito:
— A boa notícia é que o terno é lavável. A má notícia é que a minha impressão de você não é.
Fez uma pausa, os olhos verdes fixos em mim.
— Lembre-se, Mareu: você está em período de teste nessa casa. Se continuar cometendo erros atrás de erros, eu não garanto nada.
Engoli seco, sentindo o peso de cada palavra.
— Sim, senhor Novak.
Ele se afastou para pegar uma xícara de café na máquina, e foi quando Olívia se inclinou na minha direção, sussurrando baixinho:
— Ele não tá tão bravo quanto tá fazendo parecer.
Olhei para ela, incrédula.
— Nunca vi o papai chegar tão perto de rir num desastre — ela completou, os olhos brilhando com diversão.
Franzi a testa.
— E por que não riu? Travou? Ou o software de humor veio desinstalado de fábrica?
Olívia abafou uma risadinha, cobrindo a boca com a mão.
Senhor Novak voltou para a mesa, a xícara de café na mão, e soltou um suspiro pesado.
— Como se levar um banho de suco não fosse o suficiente, ainda não posso dirigir por causa daquele maldito exame de vista — disse, mais para si mesmo do que para nós. — O motorista leva vocês primeiro e depois me deixa no escritório.
Olhou para o relógio no pulso, o cenho franzido.
— Vamos. Não posso me atrasar.
O carro era do tipo que eu costumava andar quando morava com meus pais. Preto, vidros fumês, interior de couro bege impecável. O motorista, um homem de meia-idade e uniforme sóbrio, já estava esperando com a porta traseira aberta.
Olívia entrou primeiro, deslizando para o meio do banco. Senhor Novak entrou logo depois, fechando a porta atrás de si.
Ok. Então... eu ia do outro lado e ninguém abria a porta pra mim. Tudo bem.
Dei a volta pelo carro e entrei do outro lado, me sentando ao lado de Olívia.
Foi quando senti o olhar de Senhor Novak sobre mim.
Virei a cabeça. Ele me encarava com aquela expressão neutra que eu já estava começando a reconhecer como "você fez algo errado de novo".
Só não sabia o quê.
O carro começou a se movimentar, saindo devagar da garagem.
Olívia se inclinou para mim e disse:
— A babá vai na frente. Com o motorista.
Ah.
Claro.
Olhei para o banco da frente, vazio. Depois para Senhor Novak. Depois para Olívia no meio.
— Ah, tudo bem… deixa eu… — comecei, já me movendo para tentar pular para a frente.
Me apoiei no banco, joelho afundando no estofamento, tentando passar por cima do console central sem cair de cara no painel.
— Mareu — a voz do Senhor Novak veio seca, impaciente. — Mareu, tira essa bunda de simetria geométrica da minha cara e volte a sentar.
Congelei, meio torta, metade do corpo já na frente, metade ainda atrás.
Pelo menos “simetria geométrica” queria dizer que minha bunda era bonitinha, pensei, tentando encontrar um lado positivo naquela humilhação.
Voltei a me sentar no banco de trás, o rosto queimando.
Olívia soltou uma risada genuína, alta, infantil. O tipo de risada de criança que não tinha nada de mini executiva. Era só... criança.
— Que bom que meu desastre te diverte — murmurei, ajeitando a roupa.
Vi pelo canto do olho Senhor Novak esboçar um sorrisinho. Pequenininho. Quase imperceptível. Mas estava lá.
Por um segundo, achei que ele ia dizer algo. Que ia agir como uma pessoa normal, fazer uma piada, aliviar a tensão.
Mas então ele limpou a garganta, a expressão voltando àquela neutralidade controlada, e disse:
— Mareu, como tivemos aquele pequeno incidente com seu currículo, eu ainda não consegui checar suas referências.
Meu estômago deu um nó. Olívia ter derramado refrigerante no meu currículo tinha sido parte da sorte grande que tive para conseguir aquele emprego. Senhor Novak precisava mesmo mexer com isso agora?
— Pode me passar o contato da última casa em que você trabalhou?
Merda.
— Posso… ahh… er... posso, posso…
Peguei o celular com as mãos tremendo, abri os contatos e passei o número de Clara.
— Pode falar com a Clara — disse.
Ele franziu o cenho levemente.
— Clara?
Merda de novo. Eu estava sendo casual demais para quem se referia a sua antiga patroa, não?
— Dona. Dona Clara — corrigi rápido.
Ele anotou o número no celular dele sem comentar.
Clara era minha melhor amiga. E quem melhor do que minha melhor amiga para servir como referência, não é?
Ela tinha filhos? Não.
Eu já tinha trabalhado para ela? Claro que não.
Mas Senhor Novak não precisava saber de nada disso.
Clara ia saber desenrolar. Tinha que saber.
O carro parou em frente a uma escola particular enorme, com portões de ferro, jardins impecáveis e crianças de uniformes caros descendo de carros ainda mais caros.
Olívia olhou para o pai com aqueles olhos grandes e esperançosos.
— Papai, você pode me levar até o portão?
Senhor Novak estava mexendo no celular, a testa franzida, claramente imerso em algum e-mail urgente.
— Desculpa, querida, mas o papai já está atrasado.
Vi a expressão dela mudar. Não muito. Só um pouquinho. Mas o suficiente para eu perceber que ela ficou triste.
— Tudo bem — ela disse, baixinho.
Depois respirou fundo e tentou de novo, a voz saindo mais animada, forçada:
— Mas você vai na minha apresentação de balé na semana que vem, não vai?
— Claro, claro — Senhor Novak respondeu, sem tirar os olhos do celular.
Olívia soltou o cinto e pegou a lancheira. Abri minha porta e o celular de Senhor Novak tocou no mesmo instante. Ele atendeu imediatamente, a voz saindo seca, profissional:
— Novak falando.
Desci do carro e me virei para ajudar Olívia, segurando a mão dela enquanto ela descia também. Minha mão já estava na porta, prestes a fechá-la para o carro seguir, quando Senhor Novak explodiu com uma fúria que eu não tinha ouvido ainda:
— Eu já falei que não quero saber mais nada desse casamento arranjado!
Congelei, a mão ainda na porta.
Nossos olhos se cruzaram por uma fração de segundo. Ele me olhou. Eu olhei para ele. A expressão dele mudou — surpresa, talvez, por ter falado aquilo na minha frente.
Antes que qualquer um de nós pudesse dizer qualquer coisa, bati a porta.







