Alguns dias depois, sob os cuidados obsessivos da família, Linda recebeu alta — e ninguém, nem por um segundo, lançou um olhar ao quarto ao lado, onde eu ainda jazia intoxicada, com a prata corroendo meu corpo.

Mamãe preparou suas malas ao amanhecer. Papai já tinha estacionado o SUV na porta do posto de cura, com medo que ela sentisse um sopro de frio.

Até Natã, que sempre foi mais contido, ajoelhou-se para calçar seus sapatos — como se dobrar a coluna fosse um sacrifício grande demais para ela.

No caminho de volta, mamãe ainda espumava de raiva:

— Aquela Coni é um monstro sem coração! Desde que Linda se machucou, ela não apareceu uma vez sequer! Ainda bloqueou toda a nossa Conexão Espiritual! Que tipo de irmã faz isso?! Quando a gente chegar em casa, eu arranco a pele dela com as minhas próprias garras!

Papai lançou um olhar frio e murmurou, com desdém:

— Eu sempre disse: ela é um veneno. Desta vez, vou “corrigir” isso pessoalmente.

A palavra “corrigir” fez minha alma tremer.

E então, vieram as memórias. Como uma onda negra invadindo tudo.

Desde pequena, tudo sempre foi da Linda — e nada meu.

Tudo começou naquela noite de inverno. Eu derrubei um candelabro sem querer. O susto fez mamãe entrar em trabalho de parto antes da hora. Linda nasceu em meio à geada, mal respirando.

A Linda dormiu por três dias e três noites, o coração fraquinho, batendo quase à força. Quando finalmente abriu os olhos, as Curandeiras disseram que ela jamais despertaria sua própria loba.

E todos culparam a mim, todos diziam que ela não despertou sua própria loba por minha culpa.

Meu pai, tomado pela fúria, me arrancou da porta do quarto, ergueu a garra e me deu um tapa tão forte que meus ouvidos zumbiram — sangue escorreu dos meus tímpanos.

— Desgraçada! Sua irmã quase morreu por sua causa!

O olhar de mamãe não era de dor — era de repulsa. Como se eu fosse um erro. Algo que nunca deveria ter existido.

Anos depois, quando eu já estudava na Faculdade da Alcateia dos Lobos, por ter disputado com Linda um casaco de pele de arminho que meu pai nos dera de presente, fui castigada com três chicotadas — o chicote embebido em pó de prata, que me deixou acamada por três longos dias.

Aquele casaco era um presente que meu pai trouxera para nós duas. Embora o meu fosse apenas uma peça simples comprada às pressas, enquanto o quarto de Linda já transbordava de peles raras e valiosas, ela insistiu em cobiçar justamente aquele que era meu.

Quando recusei, ela se jogou no chão como se eu a tivesse atacado com garras. Gritou tão alto que mamãe veio correndo, desesperada.

Mamãe a puxou nos braços, protetora, os olhos em fúria：

— Coni! Você tem ideia de tudo que sua irmã passou desde o nascimento?! Ainda tem coragem de machucá-la?!

— Eu… eu não fiz nada… — Minha voz saiu fraca, querendo se explicar.

Linda me interrompeu com um soluço bem ensaiado, os olhos marejados:

— Mamãe… não culpe a Coni… a culpa foi minha… eu não devia ter cobiçado o casaco dela…

Antes que eu terminasse de entender o que estava acontecendo, papai me ergueu pelo colarinho e me arremessou no chão：

— Uma filha fria como você não merece viver numa casa cheia de amor!

Chorei, supliquei para ele parar. Mas quanto mais eu implorava, mais ele se convencia de que eu estava apenas encenando. Os golpes não pararam — só ficaram mais fortes.

Mamãe e Natã assistiram tudo de longe, imóveis. Como se eu não fosse sangue deles. Como se eu fosse um bicho estranho, que nunca fez parte.

Naquele dia, não sei quanto tempo fiquei caída no chão. A dor apagava o tempo.

Desde então, bastava Linda chorar e dizer:

“Foi a Coni.”

E eu virava o monstro.

Aprendi a não disputar afeto. A não me defender. A nem sequer me aproximar de mamãe.

E agora — anos depois — tudo continua igual. Eles continuavam a cuidar da Linda como se nada tivesse acontecido — enquanto eu era deixada de lado, esquecida num canto, como se nem existisse.