Alex dormira mal. Tivera pesadelos. Os mesmos de sempre. Lembranças que o perseguiam e que jamais sairiam de sua mente. Eram tão intensos que acordara e sua camisa estava molhada de tanto transpirar.
Tomou um banho frio. Detestava água fria, mas era o que fazia desde então. Cada gota fria em seu corpo era como se apanhasse, como se culpasse seu corpo e alma por tudo que acontecera. Escutara do doutor que não foi sua culpa e que deveria deixar o passado de lado e procurar um novo sentido para sua vida, porém era em cada banho gelado que se punia. E nada poderia fazer com que se sentisse menos culpado.
Saiu, com frio, e viu o corpo com uma coloração roxa no espelho. Se secou e colocou uma roupa quente.
De um dia para o outro a temperatura caíra. Pegou um agasalho de moletom e colocou em sua mochila.
Desceu pelo elevador do prédio onde conseguira alugar um apartamento. Era grande, com sala, cozinha, banheiro e dois quartos. Um deles permanecia arrumado com uma cama de solteiro e roupas de criança, como se esperasse alguém.
Ao chegar na saída do prédio, logo entrou em um ônibus lotado. Levaria dez minutos até o abrigo. Olhou para um carro azul estacionado do outro lado da rua e suspirou.
A viagem aconteceu sem nenhuma surpresa. Pessoas entravam, saíam, falavam da vida alheia e comentavam sobre assuntos cotidianos. Ele permanecia em silêncio.
Um forte nevoeiro cobriu a cidade e os termômetros marcavam 10 graus.
Desceu do ônibus e, novamente, ninguém estava na porta do abrigo. Entrou e a senhora continuava na máquina de escrever antiga.
– Bom dia!
Sem sucesso. Era como se aquele fosse o único mundo dela.
Na frente da sala de Estela, estavam empilhadas oito caixas. Ele parou na porta:
– Bom dia!
Estela estava na mesma cadeira. Dessa vez, mexia no computador. Alex tinha memória fotográfica e lembrava daquele computador montado ali no dia anterior. Espiou e viu que ela mexia em registros de crianças.
Ao ver o novo professor, ela balbuciou, um pouco furiosa:
– Essas caixas aí fora, são computadores novos. Chegaram há alguns dias.
Ele esboçou um sorriso um pouco cínico. Mas, nada falou.
Pegou a primeira caixa e viu, sentada no mesmo lugar do dia anterior, com o mesmo vestido laranja e branco, Jenifer.
– Ei, princesa, preciso de sua ajuda novamente.
A menina levantou a cabeça. Ele viu um leve brilho em seu olhar. Ela correu para a sala da informática.
Neste momento, João chegava por trás e viu a cena. Irado, ele entrou na sala de Estela:
– Temos que ficar de olho nesse tal de Alex.
Estela olhou para o marido irritada:
– Eu sei. De alguma forma ele conseguiu descobrir sobre os computadores novos. Tive que pedir que entregassem aqui de volta com urgência.
João socou a mesa:
– Pior do que isso. Ele está se aproximando dela. Pode atrapalhar tudo.
Estela coçou a cabeça:
– Temos que ter calma. Daremos um jeito. Qualquer coisa, tenho um plano B. Descobri algo muito interessante para nós.
João pegou o charuto que repousava sobre a mesa e acendeu perto da janela. Demostrava bastante irritação.
Alex e Jenifer entraram na sala. Ele colocou a caixa no chão e tocou no braço da menina:
– Você está gelada! Por que não colocou um casaco?
Ela, um pouco introvertida, mas, com frio, disse:
– Eu... eu não tenho.
Alex não esperou mais nada. Pegou o casaco que levara na mochila e colocara na menina:
– Vai aquecer você.
Ela ficou com as bochechas rosadas, mas, sentia-se mais confortável.
Ainda preocupado, ele tocou no rosto dela:
– Criança, fique aqui na sala. Vou carregar as outras caixas.
Ela concordou com a cabeça.
Após colocar os 8 computadores na sala, Alex e a menina tiraram um por um e substituíram os antigos. Levaram a manhã inteira fazendo isso.
A sirene do almoço tocou. Jenifer, que não dissera mais nenhuma palavra, olhou para o professor. Ele sorriu:
– Vá, Jenifer. Estarei aqui na parte da tarde. Hoje as turmas começam as aulas.
Ela saiu, com o casaco no corpo.
Alex estava intrigado. Algo estava errado ali. Como poderia uma menina não ter um agasalho?
Na parte da tarde, ele começou a andar pelas turmas. Conheceu cada uma das professoras e sentiu o mesmo que sentira com as cozinheiras. Percebeu que não era bem visto nem seria bem recebido.
A última turma que visitara a sala nova de informática fora justamente a turma de Jenifer. Ao seguirem para a sala, ele reparou em um menino, maior do que ela, que implicava com a menina e dizia algumas palavras com outro garoto.
Alex se apresentou:
– Sou Alex, professor de informática. Quero que se dividam em duplas e sentem em um computador.
Eram 15 crianças e a criança que sobrou foi justamente Jenifer. Parecia que a turma não gostava da menina.
Quando organizara a sala, ele colocara um computador na frente, de onde todos os alunos veriam os comandos e as aulas. Ele era ligado a um projetor na parede. Foi justamente neste computador que colocou Jenifer.
– Antes de começar, quero que todos saibam que a sala de informática teve a participação de Jenifer na arrumação. Sem ela, nenhum de vocês estaria agora em um computador.
Os alunos todos ficaram de cara amarrada. Alex percebeu. A menina olhava fixamente para o computador.
Durante a aula, o professor observou as habilidades da menina em manusear as ferramentas dos softwares. Certamente que ela já tivera um contato anterior.
A aula acabou. Todos saíram menos a menina. Ela desligou todas as máquinas para o professor. Na hora de sair, retirou o casaco e esticou para entregar a Alex. Ele olhou para a menina com um olhar triste:
– Ei, Jenifer. O casaco é seu. Eu não lhe emprestei, eu lhe dei.
A menina, assustada, colocou o casaco e saiu correndo. Segundos depois, ela voltou na porta e disse:
– O... brigada.
E correu de novo.
Alex sentou e lágrimas correram de seu rosto. Lágrimas que nem mesmo ele poderia explicar. Lágrimas que mostravam o quanto ele sentia que ela estava sofrendo.
Enxugou o rosto e juntou suas coisas. Viu sobre a mesa uma chave, que achara no meio da sucata. Olhou para a porta. Poderia trancar a sala.
Assim o fez. Somente ele teria acesso àquela sala.
Sem saber disso, João foi até a sala de noite e tentou entrar. Como estava trancada, socou a parede e deixou escapar um palavrão.
– Ele está começando a me irritar.
O homem desceu pisando forte.
O professor, depois de traçar seu caminho de volta, chegou em casa. Dessa vez, ele ligou para o doutor:
– Meu amigo, obrigado pela interferência.
O doutor deu um sorriso:
– Eu lhe disse que ajudaria. Além do mais, os computadores foram caros. Quantos estavam lá?
– Oito fechados e um na sala de Estela.
O doutor se silenciou por um momento:
– Me pergunto onde estará o outro. Temos que descobrir.
Alex suspirou:
– Tem algo que me preocupa. A menina. Ela estava gelada e disse que não tinha um casaco.
O doutor deu um grito no telefone:
– O quê? Como assim? Uma confecção leva roupas para todas as crianças mensalmente!
Alex respirou fundo:
– Meu amigo, há algo errado. Eles agem como se a menina nem existisse, deixam ela com um vestido laranja e branco e...
O doutor interrompeu:
– Espere! Você disse laranja e branco?
O professor respondeu, surpreso:
– Sim. Algum problema?
O doutor ficou em silêncio por uns momentos:
– Preciso que fique de olho nessa menina. Por enquanto, monitore ela o tempo todo e procure conhecer o que puder dela. Amanhã enviarei um material sigiloso para seu e-mail.
Alex ficou preocupado:
– Doutor, algo está errado. O que pode ser?
O doutor suspirou:
– Vigie a menina de perto. Amanhã eu lhe explico melhor essa história.
Desligaram o telefone.
Ele não dormiu. Passou a noite pensando na menina. Como Jenifer lembrava “ela”. Mesmo tamanho, mesma idade. Esperava não se envolver. Não podia. Entretanto, sabia que estava ali justamente por isso. Ele se envolveria e poderia encontrar soluções. Seja lá o que pudesse estar errado. O doutor não o enviara sem motivo.