O sol ainda nem havia surgido no horizonte quando Camila foi despertada por uma batida seca em sua porta. Assustada, pulou da cama, os pés descalços tocando o tapete macio. Ao abrir, encontrou uma das empregadas da casa com uma bandeja nas mãos.
— Café da manhã, senhorita Camila. — disse, sem levantar muito os olhos. Camila estranhou. — Mas ainda está tão cedo… — Ordem da senhora Beatriz. — respondeu a funcionária, depositando a bandeja sobre a mesa antes de se retirar apressada. Na bandeja havia um suco verde, duas fatias de pão integral e algumas frutas cortadas. Tudo cuidadosamente organizado. Mas o que realmente chamava a atenção era o bilhete colocado ao lado do copo. "A partir de hoje, todos os seus horários serão definidos por mim. Você carrega algo precioso demais para ser deixado ao acaso." Camila sentiu o estômago revirar. Beatriz havia decidido, de forma definitiva, assumir o controle de cada detalhe de sua vida. --- No café da manhã coletivo, poucas horas depois, a cena foi ainda mais constrangedora. Beatriz estava sentada à cabeceira, com a postura impecável de sempre, passando as instruções como uma comandante militar. — Camila, a partir desta semana você terá acompanhamento de uma nutricionista particular. Nada de doces, frituras ou café. Sua dieta será rigorosa. Camila tentou argumentar: — Mas eu sempre tive uma alimentação saudável, senhora Beatriz. Não acho necessário— — Não cabe a você achar nada. — interrompeu a mulher, sorrindo friamente. — Cabe a você obedecer. O silêncio caiu sobre a mesa. Camila corou, sentindo os olhares dos empregados que serviam o café. Sentia-se exposta, diminuída. Ricardo, que até então observava em silêncio, finalmente se manifestou. — Beatriz, não precisa ser tão dura. — Eu sou responsável por esse bebê tanto quanto você. — ela retrucou, firme. — E não vou deixar que nada saia errado. Os olhos de Camila e Ricardo se cruzaram por um breve instante. Um olhar rápido, silencioso, mas que dizia muito: ele estava do lado dela, ainda que não pudesse demonstrar Naquele mesmo dia, Camila recebeu um cronograma impresso, elaborado pela própria Beatriz. Havia horários para acordar, se alimentar, se exercitar, descansar e até mesmo para ler. Cada minuto de sua rotina estava sob vigilância. “É como se eu tivesse perdido o direito de existir como pessoa”, pensou, sentada à beira da cama. A sensação de prisão só aumentou quando percebeu que até suas roupas haviam sido substituídas. No closet, os vestidos coloridos que trouxera de casa haviam desaparecido. No lugar, havia apenas roupas largas, em tons neutros. Indignada, procurou uma das empregadas. — Onde estão minhas coisas? A moça, constrangida, respondeu: — Ordem da senhora Beatriz. Ela disse que as roupas antigas não eram… adequadas. Camila sentiu um nó na garganta. Era como se cada traço de sua identidade estivesse sendo apagado No final da tarde, decidiu caminhar pelo jardim para tentar respirar. Mas nem mesmo ali encontrou paz. Beatriz surgiu de repente, impecável em um vestido vermelho, acompanhada por duas amigas da alta sociedade. — Ah, meninas, esta é Camila. — apresentou, com um sorriso carregado de veneno. — A jovem corajosa que aceitou nos ajudar a realizar nosso sonho. As mulheres a olharam de cima a baixo, como quem avalia uma mercadoria. Uma delas soltou uma risada discreta. — Então é você a barriga de aluguel? Que interessante. Camila sentiu o rosto arder. Quis responder, mas as palavras travaram. Beatriz, em vez de defendê-la, continuou sorrindo, satisfeita com o constrangimento evidente. — Sim, nossa Camila tem um papel muito especial. Sem ela, Ricardo e eu não poderíamos realizar o desejo de ter um herdeiro. O nome de Ricardo foi pronunciado com ênfase, como se fosse um lembrete de posse. Camila tentou manter a dignidade, ergueu o queixo e sorriu de forma contida, mas por dentro sentia-se em pedaços À noite, não conseguiu conter as lágrimas. Chorava baixinho, abraçada ao travesseiro, quando ouviu passos do lado de fora. A porta se abriu lentamente, revelando Ricardo. — Camila… — disse em voz baixa, entrando no quarto. Ela se apressou em enxugar as lágrimas. — Eu estou bem. — Não está. — Ele se aproximou, sentando-se na beira da cama. — Eu vi o que aconteceu hoje. Você não merece isso. Camila desviou o olhar, tentando se recompor. — Eu sabia que seria difícil, mas não pensei que fosse me sentir tão… anulada. Ricardo respirou fundo. — Beatriz sempre foi controladora, mas está indo longe demais. Houve um silêncio tenso. Camila olhou para ele, os olhos marejados. — Eu não sou só uma barriga de aluguel, Ricardo. Eu sou uma pessoa. — Eu sei. — respondeu ele, a voz carregada de emoção. — E é exatamente isso que me assusta. Porque quanto mais eu enxergo você… menos consigo fingir que não sinto nada. O coração de Camila disparou. — Não diga isso. Ele passou a mão pelos cabelos, em um gesto nervoso. — Eu tento, Camila. Todos os dias. Mas quando vejo o jeito que ela te trata… quando lembro da noite na biblioteca… As palavras ficaram suspensas no ar. A tensão entre os dois era quase palpável. Ricardo se inclinou um pouco mais, mas conteve-se, fechando os olhos por um instante como quem luta contra si mesmo. — Não posso. — murmurou. — Mas também não consigo me afastar. Camila sentiu as lágrimas rolarem novamente, não de dor, mas de algo ainda mais confuso: desejo, medo, e uma estranha sensação de pertencimento. — Então o que vamos fazer? — perguntou, a voz embargada. Ricardo se levantou bruscamente, como se fugisse do próprio coração. — Vamos sobreviver. Um dia de cada vez. Antes que Camila pudesse responder, ele saiu do quarto, fechando a porta atrás de si. Ela ficou ali, sozinha, com o coração em pedaços e a certeza de que estava cada vez mais envolvida em uma teia impossível de escapar. Naquela mesma noite, do outro lado da mansão, Beatriz recebia um telefonema em tom baixo. — Quero que observe cada passo dela. — disse, firme. — Não confio naquela garota. Algo não está certo. Desligou o telefone e caminhou até a janela, olhando a tempestade que se formava novamente no céu. Um sorriso frio se desenhou em seus lábios. Ela não deixaria nada nem ninguém ameaçar sua posição. Nem mesmo Ricardo.