A tarde caía devagar sobre a mansão Verdan, tingindo o mármore frio com tons dourados. Camila carregava uma bandeja com o lanche de Lucas enquanto observava pelas janelas o jardim perfeitamente aparado. Tudo ali era bonito… e vazio. Uma beleza que não aquecia. Uma perfeição que sufocava.
O silêncio da casa a acompanhava por onde ia, como um fantasma insistente. Mas desde que conheceu Adrian, ela se perguntava se o silêncio era mesmo da mansão… ou dele.
Lucas correu para a mesa assim que a viu.
— Bolo! — gritou animado.
— Sim, mas só um pedaço pequeno antes do jantar — Camila lembrou, sorrindo.
— Mas eu tô com fome! — ele insistiu, fazendo bico.
— Você sempre está com fome — ela riu, entregando o pratinho.
Lucas mordeu o bolo com aquela alegria pura e simples que só crianças conseguem sentir. Camila o observou com carinho, mas sua mente vagava, inquieta. Uma pergunta martelava desde o dia anterior:
Por que a ala leste é proibida?
Ela entendia regras. Sempre entendeu. Regras salvavam. Regras protegiam. Mas aquela proibição em especial tinha um peso diferente. Era como se lá dentro houvesse algo que Adrian não estava apenas escondendo… mas enterrando.
E enterrado demais costuma voltar à superfície.
---
Camila seguiu para a lavanderia para guardar algumas roupas de Lucas. Ao passar pelo corredor central, ouviu algo que não esperava:
Vozes. Baixas. Rápidas.
Ela não costumava ser curiosa, mas algo naquela conversa parecia… estranho. Aproximou-se devagar, até reconhecer as vozes: Adrian e Dona Sílvia.
— Não pode continuar assim, Adrian — disse a governanta.
— Eu controlo a situação — ele respondeu, seco.
— Você não controla nada quando se trata do que sente.
Camila engoliu em seco.
Sílvia continuou:
— Ela tem sido boa para o Lucas. Ele está mais calmo, dormiu melhor, até sorriu mais hoje. Você sabe o que isso significa.
Silêncio. Um silêncio pesado.
Adrian por fim disse:
— Não posso permitir que ela ultrapasse limites.
— Às vezes, os limites estão apenas na sua cabeça — Sílvia retrucou com coragem inesperada.
Adrian respirou fundo.
— Se ela chegar perto demais da ala leste… ou de mim… tudo vai se desfazer novamente. E eu não posso passar por isso outra vez.
Camila recuou antes que fosse vista. O coração batia forte. Então… era isso. Ele estava quebrado de um jeito que tentava desesperadamente esconder. E mesmo assim, mesmo sabendo disso… algo nela se aproximava dele como quem caminha em direção ao fogo.
E, naquele instante, ela percebeu:
Ele tinha medo dela.
Não dela como pessoa, mas do que ela despertava.
Algo que ele achava que tinha enterrado com a esposa.
---
Mais tarde, quando Camila voltou ao quarto de Lucas para organizar os brinquedos, encontrou o menino sentado no tapete, desenhando.
— O que está fazendo, meu amor?
Lucas levantou o desenho. Camila sorriu.
— Que lindo! Quem são?
— É você… — ele apontou. — Eu… e o papai.
O peito dela se apertou.
— Eu gostei muito — disse, beijando o topo da cabeça dele.
Mas quando guardou o desenho, percebeu algo no canto do papel: uma porta. Fechada. Escura. E uma pequena figura atrás dela.
— O que é isso, Lucas? — Camila perguntou, franzindo o cenho.
— É o quarto que a mamãe ficava — o menino respondeu sem levantar os olhos.
O mundo de Camila congelou.
— O quarto da sua mãe?
— Aham. Papai não deixa ninguém ir lá. Ele disse que se a gente abrir a porta, as coisas vão ficar tristes de novo.
Camila sentiu o corpo todo arrepiar.
Ala leste.
O quarto de Elisa.
O luto que Adrian trancava a chave.
— Você sente falta dela? — Camila perguntou suavemente.
Lucas apenas assentiu, sem chorar, sem falar. Era como se já tivesse se acostumado a sentir falta.
E isso doeu em Camila como se fosse nela.
---
Já era noite quando Camila desceu com Lucas nos braços. Ele dormira enquanto ela lhe contava uma história, e agora ela o levava para o quarto dele. Mas ao passar pela sala principal, encontrou Adrian parado na escada, observando-os.
Ele estava sem gravata, a camisa aberta no pescoço, a postura mais relaxada que de costume — mas o olhar… aquele olhar sempre dizia mais do que suas palavras.
— Ele dormiu? — perguntou Adrian.
— Muito rápido — respondeu Camila. — Acho que se sentiu seguro.
Algo mudou no rosto dele. Uma emoção rápida, indesejada.
— Você tem sido… eficiente — ele disse, escolhendo as palavras como quem anda sobre vidro.
— Não acho que seja eficiência — Camila respondeu com franqueza. — Acho que ele só precisava de alguém que o escutasse.
E então algo aconteceu.
O ar entre eles ficou denso.
Adrian desceu os últimos degraus devagar, os olhos presos aos dela. Camila sentiu a pulsação acelerar. A forma como ele se aproximava mexia com tudo: com sua respiração, seus pensamentos, sua coragem.
— Você escuta demais, Camila — Adrian disse, voz baixa.
— E isso é um problema? — ela perguntou, mantendo-se firme.
— É perigoso.
Ele estava perto demais agora.
Perto o bastante para que ela pudesse sentir o calor do corpo dele.
Poderia recuar.
Deveria recuar.
Mas não recuou.
— Não tenho medo de você — Camila disse, sem saber de onde tirou tanta ousadia.
Adrian inclinou a cabeça, os olhos escurecendo.
— Deveria.
A tensão entre eles parecia um fio prestes a romper. E por um instante — um único instante — Camila pensou que ele fosse tocá-la. Pensou que deixaria. Pensou que queria.
Mas Adrian piscou, como se acordasse de um transe, e deu um passo atrás.
— Não ultrapasse meus limites, Camila.
Ela sentiu a respiração tremer.
— Eu não ultrapassei. Você que se aproximou.
O olhar dele queimou.
— Cuidado — Adrian murmurou. — Eu não sou um homem que lida bem com provocações.
Camila ergueu o queixo.
— Não estou provocando.
Mas talvez estivesse. Ou talvez fosse só verdade demais para ser dita.
Ele virou o rosto, quebrando o momento com uma frieza brusca.
— Vá descansar. Amanhã teremos um dia cheio.
Camila assentiu, mas antes de subir as escadas, ouviu Adrian dizer, quase para si mesmo:
— Não posso deixar isso acontecer de novo…
Ela não soube o que aquilo significava exatamente.
Mas soube o suficiente para sentir um frio na espinha.
E um calor no peito.
Contradições perigosas.
Como ele.
Como ela.
Como os dois juntos.
---
Naquela madrugada, Camila despertou num sobressalto — o mesmo sonho, o mesmo passado chamando. Mas havia algo novo. Algo inquietante.
Uma porta.
Escura.
Fechada.
E uma voz atrás dela:
“Não abra.”
Camila não sabia se pertencia ao seu pai… ou a Adrian.
Mas sabia que o destino dela, daquela casa, daquele homem — tudo estava amarrado naquele quarto proibido.
Na ala leste.
E a cada dia, ela se aproximava mais dele.
Do segredo.
Do perigo.
Do que não deveria sentir.
Mas sentia.
E era tarde demais para voltar atrás.