Não tenho muitas memórias da minha infância. Quando tento me lembrar, quase sempre parecem um borrão escuro; são poucas as situações que são claras em minha mente. As coisas começam a ficar mais vívidas apenas depois que cheguei ao convento, com seis primaveras. Era assim que eu e minha mãe contávamos os anos. Ela sempre amou coisas belas e, em especial, a primavera. Não gostava, de forma alguma, de enxergar como os anos passavam e iam castigando as pessoas aos poucos. Sempre preferiu olhar apenas para a beleza do mundo e, assim, ignorava tudo de ruim que lhe era apresentado, incluindo momentos de sua própria vida. O que, ocasionalmente, foi a corroendo por dentro e tirando o brilho da sua alma. Quando penso nisso hoje em dia, vejo que esse é o preço que a vida cobra por fingirmos demais. É como se o universo dissesse que, não importa o quanto você corra, não pode fugir de quem você é e dos pecados que cometeu. Foi uma dura lição aprendida na pele, que mesmo assim não a fez mudar. Pelo menos, pode-se dizer que ela foi fiel ao que era até o fim.
Foi-me dito, um ano depois que cheguei aqui, em uma das diversas vezes que tentei escapar para ir ao seu encontro, que a sua doença a havia, finalmente, sucumbido. Demorei para aceitar essa informação, claro, e, pelos anos seguintes, continuei tentando obter notícias suas. Não preciso dizer que todas essas tentativas foram em vão, e nada nunca retornou para mim. Então, as memórias que tenho dela são tudo o que me resta. Às vezes, me pego tão imersa nelas que se tornam tangíveis. Posso sentir o cheiro de flores frescas que emanava do seu corpo, resultado de muitos dias e noites em meio ao imenso jardim que possuíamos na mansão da famiglia. Era lá que sempre a encontrava, quando, escondida, me esgueirava por uma pequena falha da cerca-viva que demarcava os limites do oásis que tínhamos em nossa casa. Não é porque era minha mãe, mas ela era dotada de uma beleza tão angelical que, toda vez que a via, era como se estivesse observando uma obra de arte: bela, triste e imortalizada para sempre naquele mesmo lugar. Acredito que, quando Deus nos criou, deu a cada um uma chance de ser alguém e deixar sua marca neste mundo. Uns são agraciados com inteligência, outros com talento, outros com riqueza. Também há aqueles com carisma e alguns poucos com beleza. Mas, quando digo "beleza", refiro-me ao mais puro encanto natural que um ser humano pode ter. Um conjunto de não apenas uma aparência física estonteante, como também de uma aura que transmite uma graciosidade que hipnotiza qualquer um que ponha os olhos neste ser. Não sei como explicar muito bem, mas ela era daquele tipo raro de pessoa que, quando você conhece, não consegue parar de admirar, se encantar e desejar. E a dor e tristeza que carregava consigo eram o adorno que a deixavam ainda mais bela. Se ela tivesse sido tão feliz quanto todo ser humano deseja ser desde que nasce, ela não seria tão linda. Há algo de intrigante numa vida dolorosa e cheia de cicatrizes. Dizem que a destruição ama a beleza, pois precisa que algo esteja inteiro para que se transforme em ruínas.
Entretanto, nada do que ela passou era capaz de tirar sua alegria e inocência. Pelo menos, era isso que ela fazia qualquer um acreditar: estava sempre sorrindo e cantando. Por vezes, quando eu chegava de fininho ao jardim, pretendendo surpreendê-la, a pegava olhando para os pássaros que ali habitavam e entoando baixinho algumas canções. Canções estas que só ela conhecia. Mesmo com o passar dos anos, nunca mais fui capaz de ouvir alguém cantarolar melodias como as dela. Também costumava vê-la brincando com borboletas e admirando outros animais que por ali passavam. Ela os encarava como se fossem muito importantes. Era como se ela fizesse parte daquilo. Como se, mesmo com o tempo passando, ela sempre estivesse ali, em sintonia com a vida daquele lugar. Porém, para quem já está acostumado a fingir, fazer parecer que está tudo bem é tão fácil quanto respirar. E era aí que morava uma parte importante do verdadeiro "eu" da minha mãe.
Todo dia, eu tinha hora certa para ir embora. Em parte porque saía escondida e tinha que voltar antes que dessem minha falta, e em outra, porque, depois de um determinado momento, mamãe sempre me dizia que tinha um compromisso e que eu deveria sair antes que chegassem para buscá-la. No entanto, em um desses dias quaisquer, como uma boa criança curiosa, decidi fingir minha saída e fiquei escondida atrás de um arbusto para, finalmente, descobrir para onde minha mãe sempre ia depois das 16h. Hoje, com 17 anos, posso dizer com propriedade que foi a pior decisão que tomei na vida. Pois vi coisas que não deveriam ser vistas por alguém da minha idade. Minha curiosidade infantil me levou a um caminho sem volta. Me colocou onde estou atualmente e me fez encontrar o outro lado de minha mãe, que agora entendo por que ela não queria que eu visse.