Foram vinte dias a bordo do navio, uma viagem longa e exaustiva. O cheiro de sal impregnava minhas roupas, e a monotonia do oceano só era quebrada pelo balanço violento das ondas em algumas noites de tempestade. O tempo parecia se arrastar, e a única coisa que me mantinha lúcido era o objetivo: Encontrar a avó de Ayla e obter respostas.Mas a viagem de navio foi apenas o começo. Assim que chegamos ao vilarejo, a verdadeira provação começou. Não tínhamos nomes, apenas uma localização aproximada. Nos aventuramos por trilhas desconhecidas, cortamos matas fechadas, dormimos em cavernas frias onde o vento assobiava como se sussurrasse segredos antigos. Havia noites em que o frio nos cortava como lâminas, e outras em que o calor úmido tornava cada passo insuportável.E durante todo esse tempo, eu sentia sua presença.Hariel.Sempre à espreita. Sempre me observando.Não o via claramente, mas o pressentia. Como uma sombra atrás das sombras, um vulto que se esgueirava na minha mente, me fazend
Eu precisava que aquela senhora me ajudasse.— Por favor… me diga tudo o que sabe.Implorei, com a voz embargada. — Ayla… Ayla está morta. E depois de partir, uma mulher apareceu na floresta para mim. Ela dizia ser a vó de Ayla… e pediu para que eu fosse ao seu encontro. Foi por isso que vim até aqui.As palavras saíram rasgando minha garganta, como se cada sílaba carregasse o peso do meu luto. Eu ainda não conseguia aceitar aquela verdade, mas precisava usá-la como combustível. Se houvesse algo além da morte, alguma chance de reverter o que aconteceu, eu encontraria. Nem que para isso eu tivesse que rasgar o céu e o inferno com as próprias mãos.Eliza levou a mão à boca, os olhos marejando, chocada com a notícia.— Morta? Sussurrou, como se aquela palavra não fizesse sentido algum. — Quem… quem matou Ayla?— Foi um ataque. Um dos nossos, mas não um dos meus.Respondi, tentando resumir o horror que ainda me corroía por dentro pela atitude destrutiva de Laila. — Eu não pude protegê-
Eu não sabia o que ela quis dizer com " A sua jornada está só começando", mas eu estava ali para descobrir.— Entre.Ela disse, afastando-se para o lado. Você também, rapaz.Acrescentou, lançando um breve olhar para Ethan.Cruzamos a porta. O cheiro da casa era de ervas, chá quente e madeira antiga. Havia símbolos por todos os lados, coisas que agora, olhando melhor, reconheci: Magia. Era magia antiga. Forte. E uma leve lembrança veio como flash como se eu já tivesse vivenciando algo como aquilo.Nos sentamos. Ela à nossa frente. Seus olhos cravados em mim.E então, com uma tristeza profunda, ela falou:— O seres de luz me mostraram a verdade. Vi minha neta Ayla em meio as sombras. Ela estava tentando fugir, até que a escuridão a alcançou. Vi seu corpo pálido, e sua alma de desprender.Sua voz falhou, os olhos marejados. — Ela morreu, com medo e sozinha.Engoli seco. Não havia dor maior do que ouvir aquilo. Eu, um anjo obsessor, projetado para despertar o desejo... agora estava que
O silêncio tomou conta da sala por um instante, como se o mundo inteiro tivesse prendido a respiração. Eu não sabia como reagir. A presença daquela senhora, o olhar cheio de dor e sabedoria, e a lembrança da Ayla... tudo parecia me esmagar por dentro. — Você sentia que amava ela, não é? A senhora perguntou com a voz baixa, mas firme.Assenti, engolindo em seco.— Sim.Respondi. — Mesmo antes de saber quem ela era. Mesmo sem compreender o que estava acontecendo. Eu lutei contra isso… mas era como se minha alma não tivesse escolha.Ela sorriu, mas era um sorriso triste, como quem conhece as dores do tempo.— Isso porque você nunca teve escolha, Azrael. E Ayla também não.Me aproximei devagar, confuso.— Como assim?Ela suspirou e se sentou numa cadeira de balanço que rangia levemente com o movimento.— A história que você conhece, é apenas a ponta do véu. Muito antes de Ayla nascer, antes mesmo de Eliza, Clara, ou qualquer outra das mulheres da nossa linhagem, nós já éramos caçadas.
Eu estava me lembrando de alguns detalhes da minha história. Eu sempre soube que havia algo de quebrado no meu passado. Algo rachado em minha origem. Os outros anjos diziam que meu pai era um dos mais poderosos da casta dos obsessores, um mestre em manipular destinos, um estrategista frio, cruel e reverenciado. Mas ninguém contava como ele morreu. Ou por quê.Agora, sentado naquela sala repleta de símbolos antigos e registros proibidos, tudo estava vindo à tona, por boca da avó de Ayla, a única que ainda sabia a história completa.— Azrael… você sabe por que seu pai foi condenado?Balancei a cabeça, devagar.— Sempre me disseram que ele desapareceu em batalha. Nunca explicaram os detalhes.Ela se encostou à cadeira, os olhos mergulhados em lembranças amargas.— Seu pai foi condenado porque fracassou. Não uma vez. Mas repetidas vezes. Cada vez que você se apaixonava por Ayla, cada vez que sua memória resistia aos encantamentos dele… cada lembrança sua era um furo na autoridade dele. No
Eu encontrei Hariel onde sempre o via, entre os mundos, pairando sobre a neblina onde os vivos e os mortos se confundem. Quando apareci diante dele, percebi em seus olhos algo que nunca vi antes.Medo.— Você falou com ela, e ela usou magia em você.Ele disse antes que eu dissesse qualquer coisa.— Sim. Ela me contou tudo. Sobre meu pai. Sobre Ayla. Sobre mim.O silêncio dele foi a confirmação que eu precisava.— Então é verdade...continuei, me aproximando...— Você sabia de tudo. Sempre soube.Hariel desviou o olhar. Pela primeira vez, ele parecia menor que eu.— Era o único jeito de mantê-los vivos.Ele murmurou. — Se você soubesse, teria tentado impedir o ciclo. E isso quebraria as regras do equilíbrio. Você teria morrido, Azrael.— E Ayla morreu todas as outras vezes por sua causa! Gritei. — Você me impediu de lembrar. De protegê-la. De salvá-la!— Porque o amor de vocês ameaça tudo o que conhecemos!Ele retrucou. — Você é um anjo obsessor, Azrael. Ela é sangue legítimo de Cl
Dezoito anos.Esse era o tempo que me separava dela.O tempo que precisei suportar com a ausência que dilacerava cada fragmento da minha existência. O tempo que passei vivendo como um espectro entre os humanos, sem propósito, sem alma.Ainda morava com Ethan.Éramos amigos, quase irmãos. A convivência com ele tornara-se minha âncora. Diferente de mim, Ethan seguiu sua vida. Estava noivo de uma mulher que conheceu na academia, uma humana gentil, de sorriso fácil e coração firme. Ele dizia que ela trazia paz. Eu não sabia mais o que isso significava.Numa dessas noites vazias, enquanto o silêncio pairava sobre a casa, Ethan sentou-se comigo na varanda, observando o céu.— Já se passaram dezoito anos.Eu disse, com a voz embargada, encarando a lua. — E não houve nenhum sinal. Nenhum sussurro. Nada.Ethan me lançou um olhar tranquilo, como quem observa uma criança aflita.— Você saberá.Disse ele. — Quando a alma dela voltar, você vai sentir. Porque ela está presa a você. E você a ela. A
O tempo, novamente, se arrastava.Mas diferente de antes, agora ele carregava propósito. Cada dia era uma nova chance de vê-la crescer. Cada gesto dela, cada risada infantil, cada choro, cada passo vacilante no quintal da casa… tudo me fazia lembrar de que ela estava ali. Viva. A infância dela passou como um sopro quente de verão. Às vezes, quando a brisa balançava seus cabelos, era como se Ayla me olhasse. Como se a alma antiga dentro daquele corpo frágil reconhecesse a minha presença. E por um segundo, por um mísero segundo, eu sentia o elo vibrar entre nós.A avó dela também sabia.Estava velha, muito velha… mas seus olhos, fundos e sábios, ainda carregavam o brilho de quem reconhecia os mistérios do universo. Às vezes, me fitava da varanda, como se pudesse me ver mesmo quando eu estava invisível aos olhos humanos. Ela sentia. Sempre sentiu.E então, antes de partir, ela me chamou.Naquela noite, os ventos mudaram. As árvores se curvaram. As estrelas pareciam mais próximas da Terr