O cheiro de tempero e fritura impregnava o pequeno restaurante da minha tia, trazendo uma sensação confusa de conforto misturada à exaustão que latejava nos meus ossos. Eu limpava uma mesa perto do balcão quando ouvi a sineta da porta tocar, anunciando um novo cliente.
Olhei por cima do ombro e vi uma garota entrando. Pele dourada pelo sol, cabelo preto escorrido, jogado para o lado com uma naturalidade quase irritante. Usava um short jeans minúsculo e uma blusa justa, o tipo de roupa que chamava atenção sem nem tentar. O olhar dela varreu o ambiente como quem já conhecia cada centímetro dali, até pousar direto em mim. — Você que é a Isabela? — a voz era leve, mas carregava a certeza de quem não aceitava um não. Larguei o pano sobre a mesa e assenti, desconfiada. — E você é...? — Gabriela. Mas pode me chamar de Gabi. — Ela sorriu, escorada no balcão como se já fosse dona do pedaço. — Sou ex do idiota do Pardal. João Pedro. Conhecido como Pardal. O nome já tinha cruzado meu ouvido algumas vezes, mas nunca importei o suficiente para buscar detalhes. Um nó se formou no meu estômago, ela vinha do mesmo mundo que eu tentava, desesperadamente, manter à distância. — Ah. — Foi só o que consegui dizer. Ela riu baixo, como se achasse graça da minha reação. — Relaxa, eu não vim arrumar problema. Só queria te conhecer. Dizem que você é diferente das meninas daqui. Franzi a testa. — Dizem quem? — O povo fala. E eu escuto tudo. — Deu de ombros e puxou uma cadeira, sentando como se fosse íntima. — Mas sabe o que eu acho? Que você é forte. E isso é raro por aqui. Algo na voz dela, no olhar firme, fez minhas defesas cederem um pouco. Não parecia ter veneno escondido, só uma estranha sinceridade. — Valeu... eu acho. — respondi, voltando a limpar a mesa, mas agora sem a mesma pressa. Gabriela se inclinou, aproximando o rosto do meu. — Só um conselho. Quando a gente tenta fugir desse mundo... ele acha um jeito de puxar a gente de volta. Soltei um suspiro cansado. — Eu não estou fugindo. Só não quero fazer parte. Ela me encarou por um instante. E depois sorriu, não um sorriso leve, mas algo carregado, quase triste, quase profético. — Vamos ver até quando, princesa. (…) O restaurante estava vazio agora, exceto pelo som dos talheres que eu empilhava atrás do balcão. A luz amarelada da cozinha projetava sombras longas e trêmulas pelo chão, transformando o espaço em algo íntimo e desconfortável ao mesmo tempo. Fechar o restaurante da minha tia sempre era agridoce, o alívio de terminar o expediente misturado ao peso invisível que nunca saía dos meus ombros. Joguei o pano sobre o balcão e soltei um suspiro, esfregando as mãos úmidas no avental antes de puxá-lo pela cabeça. A conversa com Gabriela ainda zumbia na minha mente. As palavras dela, o jeito como me olhou... Como se soubesse de algo inevitável. "Vamos ver até quando, princesa." Revirei os olhos sozinha, irritada comigo mesma por dar tanto espaço para aquilo na minha cabeça. Eu não era parte desse mundo. Não queria ser. Mas no fundo, sabia, fugir não era tão simples quanto desejar. Girei a chave na fechadura e saí, deixando o cheiro de óleo e comida para trás. O ar quente da noite grudou na minha pele, abafando até meus pensamentos. O beco ao lado do restaurante mergulhava numa escuridão que parecia engolir tudo, e um calafrio percorreu minha espinha quando ouvi um estalo abafado vindo dali. Tranquei a porta com mais força do que o necessário e comecei a andar depressa pela calçada estreita. Minha casa não era longe, mas hoje, cada passo parecia arrastar toneladas. Foi então que senti. Um olhar. Queimando minhas costas. Parei de súbito, o coração batendo tão rápido que era um milagre não ter saltado da minha garganta. Olhei para trás. Nada. A rua vazia. As luzes dos postes piscando preguiçosamente. O silêncio pesado como chumbo. Dei um passo para frente. Outro. Até que uma mão, grande e áspera, surgiu das sombras e me puxou com força brutal para dentro do beco. Antes que pudesse gritar, fui prensada contra uma parede fria, e uma voz baixa, perigosa, estourou no meu ouvido. — Achei que cê ia ficar feliz em me ver, princesa. A respiração dele batia quente na minha pele. O cheiro, cigarro, suor e pólvora, me invadiu, impregnando meus sentidos. Um pânico primitivo me atravessou, mas ao mesmo tempo, algo ainda mais perigoso se acendeu nas profundezas do meu corpo. Tentei empurrá-lo. Em vão. — Solta… — minha voz saiu fraca, trêmula, traindo o terror que me consumia. Ele riu. Um som rouco, perverso. — Soltar? — a mão dele desceu pelo meu braço, firme, possessiva. — Cê ainda não entendeu. Cê é minha, Isabela. Só falta aceitar. O aperto no meu quadril era forte o suficiente para marcar minha pele. Cada fibra do meu corpo gritava para eu lutar. Mas eu não consegui. Fiquei ali. Tremendo. Queimando. Odiando o que sentia. E, ainda assim, desejando mais.