Um três haviam se passado desde que Eliara chegou em Durang, ela pode conhecer novas pessoas, e fazer talvez, novas amizades, mas ela ainda não sabia se poderia contar com elas.
Naquela manhã o mal havia tocado os parapeitos das janelas quando Eliara foi chamada aos jardins internos do palácio. Ainda sonolenta, vestia-se com mãos trêmulas, com as palavras de Sulla ecoando como uma advertência sussurrada por ventos antigos.
— Hoje, você servirá nos jardins. E esteja pronta. Há olhos demais por lá... e nem todos são gentis.
Antes que pudesse fazer qualquer pergunta, Sulla desaparecera no corredor como costumava fazer — com passos silenciosos, quase sem deixar rastros, como se fosse feita de névoa e lembranças.
Eliara caminhava devagar, os dedos apertando com força a pequena cesta com frutas e pães. O corredor de pedras claras, polidas até refletirem o dia, parecia mais frio do que nunca. Ao dobrar uma esquina, sentiu a tensão crescer em seu estômago, como se o destino brincasse com suas inseguranças. E então — como que evocada por esse medo — a figura que mais temia surgiu, esguia e cruel, diante de si.
— Ora, ora... — A voz melosa e cortante de Kora encheu o ar, ecoando pelas colunas de mármore como o som de um copo se quebrando. Ela estava apoiada com elegância calculada contra uma pilastra, os braços cruzados e o olhar venenoso cravado em Eliara. — E não é a nossa nova serviçal favorita?
Eliara parou de imediato. Os olhos, instintivamente, foram para o chão. Como aprendera. Responder apenas o necessário. Respirar pouco. Ser invisível.
— Vossa graça. — disse com uma reverência discreta, quase sussurrada.
— Tsc. — Kora deu dois passos à frente, os saltos batendo no chão como marteladas em ferro. — “Vossa graça”? Está tentando impressionar alguém, ômega? Ou já se sente parte da corte?
Eliara permaneceu em silêncio. Aquela mulher era um espinho de veneno oculto sob cetins, e qualquer reação só serviria de isca.
— Você é só mais uma. Fraca, calada... substituível. — Kora se aproximou, sua voz agora reduzida a um sussurro gélido. — Não importa se Valkar te olhou por mais de três segundos. O que ele quer... ele toma. E depois descarta.
As palavras cortaram fundo. Eliara sentiu o peito afundar, mas não deixou que seus olhos traíssem sua dor. Apertou os dedos ao redor da cesta, mantendo-se firme.
— Com licença. — murmurou, dando um passo para o lado.
Kora riu, alta e sem pudor, os olhos cheios de desprezo.
— Tenha cuidado onde pisa, florzinha. Nem todo jardim é seguro para colheita.
Mas então, como se o próprio destino decidisse intervir, Kora recuou de súbito. Um silêncio denso caiu sobre o corredor. Eliara, com o coração acelerado, ergueu os olhos — e então viu. Um vulto na sacada, quase oculto pelas sombras. A presença era impossível de ignorar.
Era Valkar.
O rei observava. Imóvel, braços cruzados sobre o peito largo, os olhos cada um com a sua cor, como lâminas sem cor. Mas havia algo ali — uma atenção intensa demais para alguém que sempre alegava indiferença.
Eliara sentiu o ar preso nos pulmões. Deu um passo, depois outro, afastando-se dali com a cesta em mãos. E conforme caminhava em direção ao jardim, o silêncio de Valkar a seguia como um sopro nas costas.
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Os jardins do palácio eram como um mundo encantado, esculpido à parte da realidade. Árvores ancestrais erguiam-se como guardiãs silenciosas, suas folhas murmurando segredos ao vento. Flores raras — algumas trazidas de reinos distantes — espalhavam um perfume doce e inebriante. A brisa fresca dançava entre as estátuas de mármore, carregando histórias antigas e promessas quebradas.
E entre aquelas árvores, corria uma figura pequena, descalça, com cabelos escuros como a noite e olhos brilhando com uma curiosidade inquieta, ela ainda não o conhecia, mas sabia de quem se tratava — Maekor, o príncipe herdeiro.
— Espera aí! — sua voz infantil ecoou, leve, mas urgente.
Eliara virou-se, surpresa, nãoesperava que ele a fosse chamar. O menino vinha correndo em sua direção, ofegante. Roupas simples demais para um príncipe, mas com uma postura que denunciava sua linhagem. O sangue do rei.
— Você é nova — disse ele, parando diante dela. — Qual o seu nome?
— Eu sou Eliara... senhor. — respondeu, ainda com a voz presa pelo medo, vai que ele fosse igual ao rei, apesar de sua aparência encantadora, nunca se sabe nem?
— Maekor. — Ele estendeu a mão como um adulto, um gesto de firmeza forçada. — Mas não precisa me chamar de senhor. Só meu pai gosta disso.
Ela riu, um som frágil e inesperado. Por um momento, o peso em seus ombros pareceu ceder, para sua surpresa.
— Então... posso te chamar de Maekor?
— Claro. Você traz pães? — apontou para a cesta, com olhos famintos de expectativa.
— Sim. Quer um?
— Quero dois. — disse com seriedade. — Um pra mim e outro pro Rion.
— Rion?
Nesse instante, um falcão surgiu do alto, descendo com elegância silenciosa e pousando no ombro do menino. As asas recolheram-se como um manto, e os olhos dourados do animal fixaram-se em Eliara, atentos.
— Meu amigo. Ele gosta de migalhas.
Ela partiu um pão em dois, entregando metade ao menino. Maekor sorriu e sentou-se na borda de uma fonte de pedra adornada com lírios brancos. O silêncio que se seguiu foi quase sagrado, quebrado apenas pelos sons leves do jardim.
— Sabe... você tem olhos tristes. — comentou ele, com uma sinceridade crua. — Minha mãe também tinha. Antes de ir embora.
Eliara sentiu um nó subir pela garganta.
— Sua mãe...?
— Ninguém fala dela. Eu lembro do cheiro do cabelo... e da risada. — Maekor olhou para a água da fonte, como se buscasse ali uma lembrança. — Mas quando pergunto, o castelo vira gelo.
Eliara se ajoelhou ao lado dele, devagar, o coração apertado. Havia algo naquele menino que a fazia esquecer o medo — que a fazia lembrar que ainda tinha um coração.
— Você sabe por que as pessoas têm medo de palavras? — ele perguntou, com olhos que pareciam ver através dela.
— Às vezes... as palavras escondem coisas que doem muito. E algumas dores são como feridas que nunca fecham. — respondeu, com a voz baixa.
Maekor ficou pensativo por um instante. Depois, sussurrou:
— Acho que meu pai ainda sangra por dentro. Por isso, ele nunca fala dela.
Eliara queria abraçá-lo. Mas havia regras invisíveis que a impediam. Em vez disso, estendeu a mão e tocou levemente a dele.
— Você é muito corajoso, Maekor.
— E você também é. — ele sorriu. — Mas precisa sorrir mais. Você é bonita quando sorri. Mesmo que seus olhos ainda estejam tristes.
Ela riu baixinho, um riso novo, aquecido pela primeira vez desde que pisara naquele castelo frio.
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Mais tarde, Eliara ajudava a recolher as cestas quando ouviu o choro abafado vindo de trás das trepadeiras. A voz era contida, como se alguém lutasse para não ser ouvido.
Ela seguiu o som.
Atrás de uma roseira, encontrou Maekor, ajoelhado, o rosto enterrado nas mãos.
— Maekor?
O menino ergueu os olhos rapidamente, envergonhado.
— Eu... só estava pensando... em um sonho ruim.
Ela se aproximou devagar.
— Quer me contar?
— Eu vejo ela... — sussurrou ele. — Vejo minha mãe nos corredores. Às vezes, ela segura minha mão. Às vezes, grita de um lugar que não consigo alcançar. Mas sempre... sempre desaparece. E quando olho pra trás, é o rosto do meu pai que está lá. Mas ele... ele não me vê.
Eliara sentou-se ao lado dele.
— Esses sonhos... não são só pesadelos. São memórias misturadas com medo. Às vezes, são verdades tentando sair.
Maekor fungou.
— Será que ela foi embora... porque não me amava?
Eliara o puxou suavemente para perto. Quebrando as regras, ignorando os riscos. Apenas sentindo.
— Nunca diga isso. Mães amam além do que o mundo pode entender. Mesmo se tiverem que ir embora. Mesmo se forem levadas.
Maekor encostou a cabeça no ombro dela. E ali, no meio do jardim, entre sombras e flores, eles partilharam uma dor antiga — que talvez apenas os que perderam soubessem reconhecer.
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Na sacada do palácio, oculto entre colunas e véus de sombra, Valkar observava. Os olhos fixos em Eliara e Maekor, mas a mente longe — em um passado que o assombrava como o gosto do sangue antigo. O riso do filho com aquela ômega acendia uma vela esquecida dentro dele. Mas junto com a luz... vinha o fogo.
Um vento soprou do norte, e ele fechou os olhos por um segundo.
Naquele instante, ele ouviu — ou achou que ouviu — a risada de sua rainha morta.
E quando os reabriu, ainda dor estava lá. Mas também o perigo.
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