Capítulo 4: Os Ecos da Verdade

O salão de vidro do Palácio de Durang reluzia sob o sol da manhã, mas o brilho não alcançava os recantos mais sombrios dos corredores. Eliara, agora mais habituada ao ritmo cruel da corte, caminhava com passos leves. Trazia nas mãos um jarro com infusão de ervas, seu destino era a estufa onde serviriam os oficiais do palácio naquela manhã.

— Não deveria andar sozinha para esses lados. — disse uma voz masculina, profunda e bem-humorada. Eliara virou-se, assustada.

Era um homem alto, pele morena clara, cabelo escuro preso numa trança rígida que lhe batia no ombro. Vestia o uniforme azul profundo dos oficiais da guarda real, com insígnias prateadas bordadas no peito largo. Seu sorriso era aberto, mas os olhos avaliavam com atenção.

— Sou o comandante Arkan. E você deve ser a nova protegida do rei.

— Eliara — respondeu ela, endireitando-se e tentando esconder o nervosismo. — E não sou exatamente uma protegida.

— Não? — Arkan ergueu uma sobrancelha, o tom provocador. — É difícil não perceber como Valkar a observa. Como se fosse o próprio sol pairando sobre seu mundo.

Eliara corou, desviando os olhos. Mas o comentário lhe despertou uma inquietação estranha, um calor que subia pelas costas. A lembrança da última vez que vira Valkar — com o rosto austero e olhos sombrios após o ataque no corredor — ainda a perseguia.

— Apenas estou tentando sobreviver — murmurou.

— Aqui, isso já é mais do que suficiente — respondeu Arkan, suavizando a voz. — Venha, vou acompanhá-la até a estufa. Está sempre cheia de soldados sonolentos que fingem ser importantes.

A estufa era um mundo à parte: cheia de plantas exóticas, mesas baixas de madeira envernizada e bancos esculpidos em forma de serpentes aladas. Oficiais riam entre goles de chá quente, mas todos calaram-se assim que Arkan entrou com Eliara ao lado. Ela serviu os jarros em silêncio, mas sentia os olhos sobre si. Não apenas de Arkan, que puxava conversa aqui e ali, mas de outros homens — olhares curiosos, outros maliciosos, e uns poucos com genuíno respeito.

— Gosta de jardins? — Arkan perguntou após um tempo.

— Cresci entre ervas e terra molhada. Meu pai era boticário.

— E agora está no meio de bestas vestidas de ouro — comentou ele, encostando-se à parede. — O rei sabe escolher suas flores.

— Por que me chama assim? — perguntou ela, franzindo o cenho. — De flor.

— Porque é o que parece. Mas... — Ele se inclinou, o rosto mais próximo. — Nem todas as flores são frágeis, não é?

Antes que Eliara pudesse responder, ela ouviu uma porta de ferro se abrir. Uma brisa morna passou por ela, mas não foi o vento que a fez estremecer.

Foi a voz.

— Maekor. — disse alguém, com um tom grave, rouco e impositivo.

Ela não o viu de imediato, mas cada sílaba ressoou em seu peito como um trovão. Aquela voz... era como se a terra falasse. Profunda, metálica, carregada de poder e uma brutalidade controlada. Havia algo de ancestral nela, como se pertencesse a uma linhagem de reis que não precisavam levantar a mão para dominar — bastava falar.

Eliara se virou devagar, sentindo um frio inesperado subir por sua espinha. Seus olhos encontraram o homem no alto da escadaria, recortado contra a luz do vitral rubro. Era Valkar.

Seu coração bateu mais forte. Não por medo, não exatamente. Havia algo de proibido, quase impuro naquele momento. Aquela voz parecia ter atravessado suas camadas mais profundas, indo direto onde ela guardava os segredos que nem sabia ter. Era como se ele a tivesse tocado... sem jamais ter chegado perto.

Ela não soube onde pôr os olhos. Sentiu a garganta seca, os dedos trêmulos ao segurar a tigela do menino. E, mesmo assim, algo nela queria ouvir de novo. Queria que ele falasse. Queria que ele a chamasse.

Valkar desceu, os olhos cor de âmbar cravados nela por um segundo além do necessário. Havia silêncio, exceto pelo tambor do sangue de Eliara em seus ouvidos.

— E você... — ele disse, o tom mais baixo agora, quase íntimo. — Quem é?

Eliara mal conseguiu respirar, quanto mais responder. Pela primeira vez, em muito tempo, alguém a desmontava com tão pouco.

Ele vestia uma túnica preta com detalhes escarlates, os olhos como tempestades prestes a romper. Por um instante, os dois homens mediram-se em silêncio.

— Comandante Arkan. — A voz de Valkar era cortante. — Achei que teria relatórios para entregar sobre os portões do sul.

— Estão prontos. Mas achei prudente garantir que a... senhorita Eliara não se perdesse nos corredores.

— Ela sabe caminhar sozinha. — Valkar virou-se para ela. — Venha. Agora.

Sem responder, Eliara acompanhou-o. O silêncio era tenso enquanto cruzavam os corredores, os passos dele duros, os dela indecisos.

— Você não tem permissão para flertar com soldados — disse ele, enfim.

— Eu estava servindo chá.

— E sorrindo demais.

Ela parou, virando-se para ele. — E desde quando sorrir é um crime?

Valkar a encarou. — Desde que você chegou aqui, sorrir pode ser mortal.

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Mais tarde naquele dia, Valkar entrou na sala onde Maekor costumava brincar. O menino estava sozinho, empilhando pequenos blocos de madeira em forma de dragões. Mas o cheiro no ar o fez parar. Um cheiro metálico, estranho. A porta do quarto estava entreaberta.

— Mirta? — chamou ele.

Do outro lado da porta, a velha babá virou-se. Era uma mulher magra, de rosto ossudo e cabelo grisalho preso num coque frouxo.

— Majestade? — Ela sorriu, mas havia algo estranho em seus olhos. Algo que lembrava escuridão estagnada.

— O que aconteceu aqui? Que cheiro é esse?

— Apenas um pequeno ferimento, milorde. Maekor se cortou com a madeira — disse ela, mostrando uma toalha manchada de sangue.

Mas Valkar sentiu algo pulsar dentro de si. Um instinto. Um sussurro antigo, do tempo em que ser Alfa significava muito mais do que um título. Ele se aproximou de Maekor e ergueu-lhe o braço: havia uma pequena queimadura no pulso.

— Como isso aconteceu? — perguntou.

O menino hesitou. Seus olhos se voltaram para a babá, então abaixou a cabeça.

Valkar ergueu-se devagar.

— Saia. Agora.

Mirta não se moveu.

— Você me ouviu, criatura? — A voz dele tremeu de raiva.

— Você está fraco, Valkar — sussurrou ela, a voz transformada. — Aquele menino vai trazer sua queda. Ele carrega a marca do eclipse.

Num piscar de olhos, Valkar a agarrou pela garganta. Os olhos dela tornaram-se negros como óleo, e a pele enrugou-se mais ainda, revelando a verdadeira forma — uma criatura antiga, corrompida, disfarçada de humana. Ela tentou cravar as unhas no rosto dele, mas Valkar foi mais rápido.

Com uma força que fez o chão tremer, lançou-a contra a parede. Os quadros despencaram, o som do impacto foi seco. Ele avançou, olhos faiscando, garras à mostra. Quando fincou os dedos em seu peito, arrancando-lhe a essência negra que vibrava como uma serpente viva, ela gritou.

E depois, silêncio.

Ele ficou ali por um momento, ofegante, a criatura morta aos seus pés. Maekor chorava. Valkar o pegou nos braços, e logo convocou os guardas.

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Ainda era cedo, mas o pátio interno já se agitava com os sons metálicos de treino. Eliara seguiu pelo corredor lateral, tentando recuperar o controle das emoções. A voz de Valkar ainda ecoava em sua mente como um feitiço.

Ao virar a ala leste, deparou-se com uma figura familiar que correu ao seu encontro: Nyria, uma jovem loira de olhos esverdeados, rosto sardento e jeito indomável, sua amiga desde os tempos difíceis no vilarejo de Bragmor.

— Eli! Finalmente te achei! — Nyria uma amiga que fizera, a abraçou com força. — Pensei que tinhas desaparecido.

— Quase desapareci mesmo… — Eliara sorriu, sentindo um alívio inesperado. — Mas estou aqui. E tu?

— Consegui entrar como assistente da costureira real. Os tecidos são lindos, mas as costuras são tortura.

Pouco depois, Taron e Lyved, dois outros rostos familiares, também novos amigos, aproximaram. Taron era um aprendiz de ferreiro, com braços fortes e sorriso fácil. Lyved, um antigo contador de histórias, andava agora com um caderno de registros sob o braço — promovido a escriba do castelo.

— Se Valkar souber que três filhos de camponeses estão andando soltos pelo palácio… — brincou Taron.

— Acho que o rei tem coisas maiores pra se preocupar — respondeu Eliara, mas não conseguiu evitar o rubor.

Eles não perceberam — ou fingiram não perceber — o jeito como ela ficou quieta ao pronunciar o nome do rei.

---

Naquela noite, o Rei chamou Eliara em seus aposentos.

Ela entrou hesitante, o vestido simples caindo suavemente sobre o corpo. Ele estava sentado, com um cálice de vinho na mão.

— A babá está morta. — Sua voz era sem rodeios. — E você vai cuidar de Maekor a partir de agora.

Ela arregalou os olhos. — Eu?

— Não confio em mais ninguém. — Ele a olhou diretamente. — E você precisa ficar longe do Poço dos Alfas. Levar água está te colocando em perigo.

— Você quer me prender neste castelo?

— Quero manter você viva.

Houve um silêncio pesado. Ela se aproximou, um passo de cada vez, até estar diante dele.

Num lapso de coragem ela o enfrentou:

— Eu não sou sua prisioneira, Majestade.

— Mas é minha. — A frase saiu antes que pudesse se conter.

Eliara estremeceu. Ele levantou-se devagar, e por um momento os dois ficaram frente a frente. A mão dele tocou a dela, por acidente — ou não. O calor espalhou-se como um raio, queimando sob a pele. Olhos nos olhos. Nenhuma palavra.

A tensão era palpável. O desejo se entrelaçava com o silêncio, mas não havia pressa. Não ainda.

— Durma aqui esta noite — disse ele, enfim. — No quarto ao lado. Maekor precisa de alguém por perto.

Sua coragem essas horas já havia voltado de onde quer que estivesse antes limitou-se simplesmente em assentir com a respiração entrecortada.

— Mas não se atreva a flertar com mais ninguém.

Ela o olhou com dúvidas. Então o rei continuou.

— Eu mato por muito menos do que um sorriso.

E então virou-se, deixando-a ali, com o coração disparado.

No dia seguinte, Eliara despertou ao som da voz suave de Maekor. O menino dormira ao seu lado, aninhado como um filhote, e agora traçava desenhos com carvão em um pergaminho antigo.

— Isso é um dragão? — ela perguntou, sorrindo.

— É o papai.

Ela engasgou com a doçura da resposta. Maekor sorria com os dentes pequenos e um olhar que lembrava muito o pai. Mas a sombra da noite anterior ainda pairava. A criatura... o que era aquilo?

Ao sair do quarto, encontrou duas figuras à porta. Amara e Lylen.

Amara era de pele escura e olhos verdes como relva molhada. Vestia-se com túnicas claras e trazia no corpo marcas de rituais antigos — era uma maga da casa das folhas de um dos reinos fortes, Defermond, já Lylen por outro lado, era uma Cicillina, típica loira, sardenta e vivaz como um vendaval. Vestia couro leve e tinha uma adaga presa à coxa.

— Então você é a escolhida do rei? — Amara disse, avaliando-a com um sorriso quase felino.

— Não sou escolhida de ninguém — Eliara respondeu.

— É o que todas dizem no começo — riu Lylen.

As três caminharam juntas pelos corredores, e ali Eliara começou a conhecer outra face do castelo — uma onde as mulheres também tinham poder, onde o riso resistia ao sangue.

Amara contou histórias sobre Valkar, que era um Alfa desde antes da rebelião das trevas. Falava de como ele enfrentara os Xorai no desfiladeiro negro, onde perdeu metade do exército para salvar apenas dez crianças.

— Ele carrega culpas demais — disse ela, sombria. — É por isso que parece feito de pedra.

Lylen piscou. — Pedra que derrete com os olhos certos...

Eliara não respondeu. Mas pensou na noite anterior. No toque. Na tensão.

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