Assim que chego na College Ten, dou de cara com Luiza, minha melhor amiga. Ela entrou na minha vida quando eu tinha uns dez anos. Na época, não dei muita bola. Geralmente, quem se aproximava era só por curiosidade — por causa da cor incomum dos meus olhos. Mas Luiza é teimosa. Teimosa demais. Foi me conquistando aos poucos, com sua presença barulhenta, com suas risadas exageradas e sua forma de simplesmente... ficar. Hoje, nossa irmandade é uma das coisas mais importantes da minha vida.
— Quem é a aniversariante mais rabugenta que conheço? — diz ela enquanto literalmente pula em cima de mim. E quando digo pular, é pular mesmo. — Feliz aniversário, pontinho de luz! Obrigada por ser essa amiga/irmã na minha vida. Tu não sabe o quanto é especial. — Tá bom, já sei que me ama, Lu — digo, rindo e retribuindo o abraço apertado. — Agora me solta. Ela começa a rir, e eu também. Não sou muito fã de contato físico, e ela sabe disso... o que não a impede de me abraçar sempre que pode. — Você não muda mesmo, né? — Ela passa o braço pelos meus ombros, e seguimos juntas para a sala de aula. — É o meu charme. O caminho até a sala é tranquilo, mas sinto o peso do dia se acumulando junto com a ansiedade que não sei nomear. As conversas e risadas de Luiza tentam me distrair, mas há algo no ar que me faz franzir a testa. Cada passo parece mais pesado do que deveria, como se o chão estivesse levemente inclinado e me empurrasse para frente. No intervalo, lembro a ela do jantar que vai ter lá em casa mais tarde. E já aviso: — E nem pense em faltar, ouviu? Ela revira os olhos com um sorrisinho. — Como se eu fosse perder comida da sua mãe. Ri, mas a sensação estranha não me abandona. É como se alguém estivesse observando cada movimento meu, cada respiração. Tento ignorar, mas o frio na nuca insiste em me lembrar que algo não está certo. Na volta pra casa, o ar parece diferente, mais pesado. Cada sombra lançada pelas árvores do bairro me faz girar a cabeça para conferir se há alguém me seguindo. Não há. Mas ainda assim, o desconforto permanece. Meu coração acelera, e não consigo me livrar da sensação de que estou prestes a descobrir algo grande, algo que vai mudar tudo. Assim que entro, dou de cara com a mamãe cozinhando. Juro, essa mulher nasceu com o dom. Tudo que ela toca se transforma em algo deliciosamente mágico. Cozinha como se fosse bruxa. Daquelas boas, claro. — Oi, mamãe — cumprimento, só depois que ela percebe minha presença. Porque, honestamente, Deus me livre assustar essa mulher enquanto ela mexe em alguma panela. Da última vez, foi só uma brincadeirinha... mas o papai estava no lugar errado, na hora errada. Sobrou pra ele. — Oi, querida. Como foi a aula? — pergunta ela, sem parar de mexer uma calda no fogão. — Foi boa, mãe. Lembrei a Lu do jantar. Sabe como ela é esquecida... E, sem pensar, deixo escapar: — Mãe... eu tô sentindo algo estranho. Uma sensação esquisita. Senti na ida e agora na volta da escola. Não sei explicar, é como se... como se alguém me olhasse o tempo todo. Assim que termino de falar, olho para ela. O choque é imediato. Por um segundo, ela congela. Tenta disfarçar, mas eu percebo. As mãos tremem um pouco. A colher quase escorrega da sua mão. E aquilo... me inquieta. — Amor... acho melhor você descansar um pouco. Deve ser a nova idade chegando, os hormônios. Tá bom? — Ela diz tudo sem me olhar nos olhos. E isso só me deixa ainda mais nervosa. — Você deve estar certa, mãe... vou descansar um pouco mesmo. Mais tarde, tento falar com o papai. Mas é como se ele já soubesse o que eu ia perguntar. Ele esquiva de todas as perguntas, e está suando. Muito. Meu pai só fica assim quando mente. E eu conheço esse olhar. Não pode ser. Eles nunca mentiram pra mim. Nunca esconderam nada. Por que fariam isso agora? Sinto um nó na garganta. Um bolo quente se forma no peito. As palavras querem sair, mas o medo de magoá-los me trava. E se for coisa da minha cabeça? E se não for? O jantar chega rapidamente. A mesa está cheia. Meus pais, meus tios, os pais da Lu, a própria Lu. Todo mundo está presente, mas o clima é estranho. Não é como antes. Sorrisos são forçados, olhares são trocados rapidamente, quase em segredo, e ninguém parece confortável. É como se todos soubessem algo que eu não sabia, algo que eu precisava descobrir. Minhas mãos começam a formigar. A sensação dentro de mim cresce, pulsa e se espalha como eletricidade. Cada segundo que passa, a ansiedade se torna quase insuportável. Tento respirar fundo, mas é inútil. — Chega! — explodo, incapaz de conter mais o que sinto. Todos param. — O que está acontecendo? Por que vocês estão diferentes? Olhares se voltam para mim. Silêncio absoluto. — O que vocês estão escondendo de mim? — minha voz treme, mas ainda é firme o suficiente para que todos percebam a seriedade do meu questionamento. — Filha, você tem que se acalmar primei... Mamãe para de falar no meio da frase. Seus olhos desviam para algo atrás de mim. E, como se fosse um reflexo em cascata, todos na mesa olham também. Um por um. Rápidos. Assustados. Meu coração dispara. O estômago se contrai, e sinto uma pressão no peito que torna difícil respirar. Viro devagar. E ali, parado no vão da porta, está um homem que eu nunca vi antes. Ou talvez... já tenha visto. Nos meus sonhos, em devaneios, talvez refletido em algum lugar dos meus pensamentos mais secretos. Ele sorri, suave. Seu manto azul brilha à luz das velas, como se absorvesse a luz e a transformasse em algo próprio, quase vivo. Cada detalhe dele — a postura, o olhar, a voz que ainda não ouvi, mas que parece preenchendo o espaço — faz meu corpo gelar, como se eu tivesse parado no tempo. Ele respira lentamente, como se estivesse medindo o momento exato. E então, seu olhar encontra o meu. Um olhar que é profundo e que parece atravessar tudo, tudo que sou e tudo que fui. Há uma sensação estranha de familiaridade, mesmo sem jamais ter visto aquele rosto antes. Ele dá um passo à frente, lento, quase ceremonial, e cada movimento seu é acompanhado de um silêncio reverente da sala inteira. Os adultos não se movem. Luiza aperta minha mão com força, mas nem ousa falar, como se a presença dele sugasse a coragem de todos nós. Ele sorri novamente. Um sorriso que não é hostil, mas cheio de significado. Um sorriso que promete respostas, mas também novos mistérios. O ar parece mais denso ao redor dele, como se tivesse absorvido tudo de estranho e incomum da minha vida e concentrado ali. Então ele fala, sua voz suave, mas carregada de autoridade e familiaridade, tão estranha e tão certeira ao mesmo tempo: — Olá, Emma. Finalmente.