— Emma Brown Carter, se eu tiver que te chamar de novo...
— Já vou, mãe! — Que saco, acho que todas as mães do mundo nasceram com um manual de frases prontas. E essa é a número um da lista. A verdade é que já estou acordada há um bom tempo. Só não consegui sair da cama ainda. Estou... letárgica. Sabe aquela sensação estranha de que algo vai acontecer? Tipo quando o céu fica cinza antes da tempestade, mesmo que a previsão diga “ensolarado”? Então. Deve ser só ansiedade por causa dos 14 anos. É, deve ser isso. Fico olhando o teto, observando os detalhes que normalmente ignoraria: a rachadura no canto, a pintura que descascou perto da janela, o jeito como a luz da manhã entra pelos cortinados e se espalha pelo quarto. Cada raio de sol parece iluminar uma parte diferente de mim mesma. O ventilador do teto gira lentamente, jogando sombras no chão e nas paredes, e cada sombra parece dançar de forma estranha. Respiro fundo e finalmente me levanto. Me espreguiço, tropeço em uma meia perdida no chão e vou me arrastando até o banheiro. Tudo parece devagar, como se a gravidade tivesse decidido aumentar só pra me deixar mais lenta. Escovo os dentes, lavo o rosto, prendo o cabelo. Cada movimento é mecânico, mas ao mesmo tempo sinto uma inquietação estranha, uma energia que não consigo explicar. E então paro. Olho para o espelho. Algo está... diferente. A imagem refletida deveria ser a de sempre. Mesmos cabelos castanhos, mesmos olhos azul-acinzentados que sempre chamaram atenção — infelizmente. Mas hoje, parecem brilhar de um jeito esquisito. Por um instante, juro que vi um reflexo prateado cruzar minha íris. Foi rápido demais para ser real? Talvez. Mas eu senti. Um arrepio percorreu minha espinha, e por um momento fiquei estática, tentando entender o que tinha acabado de acontecer. — Ok... paranoia matinal. Vamos fingir que nada aconteceu — murmuro para mim mesma, e continuo a rotina como se nada tivesse ocorrido, mesmo que meu coração ainda bata acelerado. De volta ao quarto, pego meu uniforme. Coloco a blusa e a saia com cuidado, verifico se tudo está no lugar, e então arrumo a mochila. Apesar de ser meu aniversário, não tenho folga. “Podem tirar tudo, menos o conhecimento,” como diz minha mãe. E, confesso, ela está certa. Mas será que precisava de aula justo hoje? Desço as escadas, sentindo o cheiro de café fresco e do bolo que minha mãe preparou. Sorri. É impossível esconder qualquer coisa dela quando o assunto é comida. Ela sempre consegue me fazer perceber qualquer detalhe que normalmente eu deixaria passar: o aroma da baunilha, o cheiro doce do chocolate, a manteiga derretendo na frigideira. É reconfortante, quase mágico. — Bom dia, mamãe. Pai. — contorno a mesa e deixo um beijo na bochecha dela e logo depois na do papai. Ele está com o jornal aberto, fingindo ler as manchetes, mas sei que está mesmo é na seção de palavras cruzadas, resolvendo mentalmente cada pista. Gênio das palavras e mestre da negação. — Feliz aniversário, meu lindo oceano azul! — Mamãe me envolve num abraço apertado, cobrindo meu rosto de beijos. O apelido? Sim, eu sei, é brega até a última sílaba... mas é meu. Desde que me entendo por gente, ela me chama assim. E eu amo. Quando finalmente consigo me desvencilhar do abraço materno, outro par de braços me envolve de surpresa. — Feliz aniversário, ursinho! Me diz: qual é a sensação de completar quatorze anos? — O abraço do papai é quase um casulo. Grande, quente e seguro. Mesmo fingindo que fico envergonhada, adoro esses momentos. — Ah, papai… o senhor sabe. Acho que agora tenho oficialmente mais firmeza nas costas — respondo rindo. — É claro, está entrando na fase dos boletos! — ele brinca, e todos rimos. Consigo escapar da bolha familiar, pego uma maçã e me encaminho para a porta, mochila nos ombros. — Não esquece do nosso jantar mais tarde! — mamãe avisa. — E cuidado pra não tropeçar na calçada de novo! Viro o rosto com cara de falsa indignação. — Foi uma vez, mãe! E eu tava distraída... salvando um inseto! — Você pisou *no inseto*, Emma — ela rebate rindo. — Não é verdade! Eu tropecei nele, é diferente! — Damos risada juntas, e então me despeço. — Te amo! Tchauuu! — Te amo também! — ela responde. — E não tem escolha! Vai ter jantar sim! Enquanto caminho pela calçada rumo à escola, o céu ainda está um pouco escuro. A névoa baixa cobre o chão, tornando a manhã estranhamente silenciosa. O ar parece mais denso do que o normal, e cada passo que dou faz um leve som de folhas secas sendo esmagadas, que ecoa mais do que deveria. A sensação estranha volta a me cutucar. É como se alguém estivesse me observando, um peso invisível pairando ao redor. Balanço a cabeça, tentando afastar o pensamento. Estou só sendo dramática. Muito filme de fantasia antes de dormir, só pode. No caminho, passo por algumas árvores e, por algum motivo, o vento parece sussurrar meu nome. Juro que ouvi um “Emmaaaa…” suave. Paro, olho em volta. Ninguém. Nenhum carro, nenhuma criança indo para a escola, nenhum cachorro latindo. Nada. Só o vento. — Tá tudo bem. Não tô ficando maluca — digo baixinho. — Só sensível. Hormônios, né? Mas, mesmo tentando agir normalmente, meu coração dispara. Algo dentro de mim pareceu responder ao chamado do vento, um calor estranho que se espalhou pelas minhas mãos e se misturou à sensação de inquietação no peito. Olho para as mãos. Estão normais. Mas o sentimento continua, pulsando, insistente. Sigo meu caminho, observando os detalhes do bairro como nunca antes. Cada folha caída, cada sombra projetada pela luz que tenta atravessar a névoa, tudo parece carregado de significado. Até o movimento das pessoas ao redor me parece lento, como se eu estivesse vendo a vida em câmera lenta. O aroma do pão fresco da padaria, o cheiro úmido da grama recém-cortada, o perfume doce das flores nos jardins — tudo parece mais intenso, mais vívido. Cada detalhe parece capturar minha atenção de uma forma que normalmente eu ignoraria. Me pego imaginando se alguém mais sente o mundo assim, ou se só eu consigo perceber essas pequenas alterações, esses sinais sutis que me deixam inquieta e ao mesmo tempo fascinada. Dou mais alguns passos, e meu celular vibra. Mensagem da minha melhor amiga, Luísa: > *“Partiu aula, aniversariante iluminada?”* Franzo o cenho. “Iluminada”? Nem contei pra ela do brilho estranho nos meus olhos, nem do arrepio que senti no caminho. Mas Luísa sempre fala umas coisas meio esotéricas, então talvez fosse só o jeito dela de brincar. Respondo com um emoji de raio, tentando sorrir e agir normalmente, mas meu coração ainda pulsa rápido. Talvez hoje seja só mais um dia. Ou talvez não.