Aurora acordou antes dos primeiros uivos da madrugada.Não por insônia, mas porque, enfim, o corpo e a alma estavam alinhados.A floresta da Lua Negra já não a assustava como antes. Os galhos retorcidos pareciam inclinar-se quando ela passava. Os olhos entre as árvores a seguiam — não com dúvida, mas com algo próximo de temor silencioso.Naquela manhã, ela não hesitou ao vestir a túnica preta de guerreira. Já não sentia o peso da coroa invisível sobre sua cabeça — ela começava a vesti-la por vontade própria.No centro da clareira, a Matilha a esperava. Sem um som, como fantasmas de carne. Ninguém dizia seu nome. Mas todos sabiam: a herdeira havia despertado.Velho Sangue a observava com atenção. O olhar dele já não era de reprovação, mas de análise — como se estudasse a lâmina que ele mesmo forjou.— O que vê em si, agora? — ele perguntou, pela primeira vez quebrando o silêncio antes do combate.Aurora respondeu com os olhos firmes:— Vejo o que sempre fui. Só que agora... eu aceito.
A noite caía sobre a floresta como um véu espesso. Nenhuma estrela ousava brilhar sob a influência da Lua Negra, agora quase plena. A claridade gélida tocava as folhas com dedos invisíveis, e no centro da clareira sagrada, Aurora reinava.Ela estava de pé sobre a pedra ritual, os olhos brilhando como prata líquida. A túnica negra esvoaçava com o vento encantado. E diante dela, dez guerreiros ajoelhados, testas coladas ao chão, esperando uma ordem. Qualquer ordem.— Ele traiu nossa confiança — ela dizia, com a voz baixa e calma demais para o teor da conversa. — Sabia de minha identidade. E mesmo assim mentiu.O traidor em questão era um dos caçadores da fronteira. Ele não havia traído de fato — apenas hesitado em seguir Aurora numa de suas decisões mais brutais: aniquilar um vilarejo que abrigava inimigos antigos da matilha.— Não desafiou você, minha rainha — sussurrou Nevena, ajoelhada ao lado. — Apenas teve medo.Aurora inclinou a cabeça. Por dentro, uma voz murmurava: “Medo é fraqu
Os ventos do Norte sopravam gélidos, e mesmo com o corpo coberto de suor, Darius tremia. Mas não de frio.Era madrugada quando ele acordou, arfando como se tivesse lutado contra mil inimigos. O peito subia e descia rápido, os olhos dourados arregalados encarando o teto da caverna como se pudessem rasgá-lo e atravessar céus e terras até encontrar ela.— Aurora…O nome saiu como um lamento, um sussurro amaldiçoado. E com ele veio a dor.Um aperto no coração. Não físico, mas ancestral. Um vazio que se abria como um buraco negro. E então… as visões.Ele caiu de joelhos, as mãos pressionando a cabeça quando o mundo à sua volta foi engolido por flashes:Aurora cercada por sombras, erguendo a mão com o olhar impiedoso. Aurora sorrindo… mas não era um sorriso dela. Era algo mais cruel. Mais frio. Aurora olhando para si mesma num espelho d’água e não reconhecendo o reflexo. E depois… o sangue. O poder. O trono.Darius gritou. Mas não era dor comum. Era o laço.O laço que os ligava.— Ela está.
A floresta estava viva. Galhos se retorciam como serpentes antigas, e a névoa dançava entre as árvores feito véus de um ritual proibido. Darius, agora em forma humana, avançava com dificuldade. Cada passo doía como se a terra o testasse.Mas ele sentia. Sentia ela.O cheiro de Aurora estava por toda parte — um aroma agridoce, mistura de flor e sangue. O sangue que ele conhecia melhor que o próprio.Ele emergiu na clareira e... parou.Aurora estava ali. No trono de raízes, cercada pelos membros da Matilha da Lua Negra. Ela usava um manto prateado que reluzia sob a luz da lua, os cabelos soltos como uma cascata negra. Os olhos, antes cheios de brilho e calor, agora eram intensos, duros. Quase frios.Mas o coração dele soube: a alma dela ainda gritava por ele.— Aurora... — ele chamou, a voz rouca de emoção e cansaço.Os guerreiros da Lua Negra se ergueram, mas não avançaram. Um deles — Velho Sangue — fez apenas um gesto com a mão, sinalizando que o laço era intocável.Aurora se levantou
A floresta parecia dormir, mas Aurora não. Havia dias que sua alma oscilava entre a sombra e a luz, entre o que lembrava ser e o que estava se tornando. O treinamento da Matilha da Lua Negra a forjava como ferro sob fogo. A dor era constante, os limites, testados a cada passo. Mas nada era pior do que o vazio que crescia dentro de si.Não o vazio da ausência.Era... poder.Poder que pulsava, se retorcia por baixo da pele. E que, naquele instante, ameaçava escapar.Aurora andava em círculos entre as árvores antigas, sentindo o peso do mundo nos ombros. O frio da noite colava-se à pele úmida de suor, os olhos marejados, o peito em guerra.Ela parou, pressionando o ventre.Um leve calor subiu por dentro, como uma carícia... mas logo se tornou uma pressão brutal. Como se algo dentro dela se recusasse a ficar em silêncio.— O que você está fazendo...? — sussurrou, os olhos arregalados.E então veio o grito.Não o dela.Mas do bebê.Um rugido mudo, um eco ancestral, atravessou o corpo de Aur
O novo território se erguia entre dois vales sagrados, onde a lua parecia mais próxima e a terra pulsava com energia antiga. Um espaço neutro, mas carregado de significado — o ponto de equilíbrio entre a Matilha de Darius e a temida Matilha da Lua Negra. Um lugar onde o passado seria enterrado e o futuro, forjado.As duas matilhas, antes inimigas ou, no mínimo, estranhas entre si, agora dividiam o mesmo ar. Os olhares ainda eram desconfiados, mas ninguém ousava questionar a união. Não quando Aurora andava entre eles com a postura de uma rainha em ascensão e Darius, ao lado dela, como o alfa forjado em batalha que sempre foi.A cerimônia aconteceria sob a Lua Cheia. Era o tempo perfeito, o ciclo completo, o símbolo da plenitude.Os anciãos das duas matilhas estavam reunidos, cada um com vestes cerimoniais, entalhadas com runas esquecidas. O altar era simples, feito de pedra e raízes antigas. Mas o que pairava ali não era simplicidade: era poder.Aurora vestia branco. Não o branco puro e
Quando os dois uniram as mãos ensanguentadas no centro do círculo, o mundo pareceu parar.O sangue de Aurora — espesso, escuro, pulsante como tinta viva — escorreu lentamente pelo pulso dela, misturando-se ao de Darius, que era mais claro, avermelhado como brasas recém-acesas. Ao se encontrarem, o líquido borbulhou, soltando uma fumaça prateada que subiu no ar como um feitiço antigo despertando de um sono profundo.O chão sob seus pés tremeu. Não uma vibração comum, mas um estremecer antigo, como se a própria terra reconhecesse a união de algo que nunca deveria ter se misturado.Do centro do círculo sagrado, raízes começaram a brotar, retorcidas, negras como carvão, se enroscando ao redor dos dois, formando uma espécie de casulo sagrado. A lua acima deles intensificou o brilho, pintando a cena com um tom sobrenatural. As sombras dançavam em volta, como se os próprios espíritos ancestrais observassem aquele momento.Aurora arqueou o corpo de repente, como se uma força invisível rasgass
A cerimônia mal terminara, e o ar ainda estava impregnado da energia selvagem da marca quando Aurora se viu diante da nova realidade: ser rainha não era só ser adorada — era ser julgada, observada, testada. E ela sentia isso no olhar de cada guerreiro, no silêncio tenso entre as duas matilhas agora unidas sob o mesmo território.A clareira que antes servira de palco para a união, agora era o cenário de uma reunião de liderança.Aurora estava sentada ao lado de Darius no grande círculo de pedra onde os alfas antigos tomavam decisões. Mas diferente de antes, agora ela não era mais uma forasteira. Era uma igual. Ou pior — uma ameaça disfarçada de milagre.— Precisamos realocar os grupos de caça e vigia. Os territórios da fronteira sul ainda são vulneráveis — disse um dos betas, tentando manter o tom neutro, mas seus olhos não disfarçavam o desconforto de se dirigir à nova rainha.— Que enviem os lobos mais experientes para o sul. Os mais jovens devem permanecer no centro, protegendo os f