Capítulo 02

O bolo de frutas foi cortado em pedaços generosos. O cheiro doce ainda pairava no ar quando minha tia colocou uma fatia diante de mim, sorrindo.

Sentei-me à mesa, tentando disfarçar o desconforto que crescia no peito. Tio Miguel ainda não tinha tirado os olhos da pulseira no meu braço. Mas dessa vez, percebi algo diferente no olhar dele, uma paciência tensa, como quem espera o momento certo pra começar uma conversa difícil.

Ele limpou a garganta, endireitou-se na cadeira e assumiu aquela postura que eu conhecia bem demais. O famoso “modo sério”.

— Bruna — começou ele, entrelaçando os dedos sobre a mesa —, agora que você completou dezoito anos, é hora de conversarmos sobre assuntos mais... adultos.

Eu o encarei, desconfiada.

— Que tipo de assuntos, tio Miguel?

Ele respirou fundo.

— Sua tia e eu tivemos longas conversas sobre o seu futuro. E chegamos à conclusão de que está na hora de você conhecer alguém apropriado.

Senti meu estômago se revirar.

— Como assim, conhecer alguém apropriado? — perguntei, tentando manter a voz firme.

Minha tia pigarreou, ajeitando-se na cadeira ao lado dele.

— Querida, nós falamos com o pastor João. Achamos que seria bom pra você ter um pretendente.

Minha colher parou no meio do caminho.

— Um... pretendente?

— Exato — respondeu tio Miguel, sem vacilar. — Um rapaz decente, trabalhador, da família de uma conhecida do pastor. Ele tem trinta e cinco anos, está bem estabelecido e procura uma esposa honesta para construir uma família.

Meu coração disparou, e a indignação me subiu à cabeça.

— Mas eu não pedi isso! — soltei, mais alto do que pretendia.

Minha tia franziu o cenho, tentando me acalmar.

— Querida, não precisa reagir assim. Nós só queremos o melhor pra você.

— O melhor? — perguntei, sentindo o calor da raiva subir pelo corpo. — O melhor seria me deixar escolher o que eu quero!

Tio Miguel apoiou as mãos pesadas sobre a mesa e se inclinou pra frente.

— Escolher? — repetiu com ironia. — Você mal saiu da infância, menina. O mundo lá fora está cheio de homens que não prestam, que só querem usar e jogar fora. Eu não vou permitir que estraguem sua vida.

— E a solução é me entregar pra alguém que nem conheço? — rebati, a voz trêmula de indignação. — Isso não faz o menor sentido!

O olhar dele se estreitou.

— Faz sentido, sim. O rapaz é confiável. Sua tia e eu já conversamos com a mãe dele. Queremos garantir que você tenha estabilidade e respeito.

Apertei a pulseira no meu pulso sem nem perceber.

— Respeito não se arranja em conversas de família — rebati, encarando-o. — Respeito se conquista. Amor se conquista. Eu não vou aceitar ser tratada como se fosse um objeto de troca!

Um silêncio pesado caiu sobre a mesa.

Minha tia respirou fundo.

— Bruna, não estamos te negociando...

— Estão, sim — interrompi, firme, com a garganta apertada.

Ela desviou o olhar, sem coragem de negar.

— Ele é um bom homem — murmurou. — Educado... a mãe dele vai à igreja todos os domingos...

— Não me interessa, tia.

Tio Miguel se endireitou outra vez, a voz carregada de autoridade.

— O pastor João conhece essa família há anos. São pessoas de valores. Criaram o filho com princípios sólidos — ele disse, como se estivesse anunciando uma verdade absoluta.

Senti o sangue ferver.

— Vocês estão brincando comigo? — exclamei. — É o meu aniversário de dezoito anos! Eu acabei de virar adulta e vocês já querem me empurrar pra um homem qualquer!

— Abaixe a voz, menina. — advertiu ele, cerrando o cenho. — Ninguém está te empurrando. Estamos tentando orientar você pra uma escolha sensata.

— Sensata pra quem? — retruquei, a voz embargada. — Vocês decidiram meu futuro sem me perguntar nada!

Ele bateu a mão na mesa. O prato de bolo tremeu.

— Cuidado com as palavras, menina. Eu só quero o seu bem!

Olhei pra ele, com as lágrimas ardendo nos olhos, mas me recusei a baixar a cabeça.

— O meu bem sou eu quem sei.

A expressão dele endureceu ainda mais.

— O filho da senhora Lisboa é uma escolha segura. Ele pode te dar estabilidade, respeito e um futuro sólido.

Levantei da cadeira num impulso.

— Eu não quero estabilidade! — minha voz falhou. — Quero viver. Descobrir quem sou antes de me amarrar a alguém.

Ele soltou uma risada curta, sem humor.

— Você é uma jovem de família tradicional, criada com valores cristãos. Isso é quem você é, Bruna. E o rapaz compartilha desses valores.

— Vocês não podem fazer isso comigo — murmurei, com raiva e desespero se misturando. — Não podem decidir com quem vou me casar.

Minha tia tentou intervir.

— Querida, pelo menos conheça o rapaz. Não rejeite a ideia sem conversar com ele.

— O problema não é ele, tia. O problema é vocês decidirem por mim! — explodi. — E se eu já gostasse de outra pessoa?

O olhar de tio Miguel se afunilou, desconfiado.

— Tem alguém?

Meu coração disparou. Pensei nos vizinhos, e em tudo o que jamais poderia contar.

— Não é isso... — murmurei. — Eu só quero o direito de escolher.

— O direito de escolher mal, é isso que você quer — retrucou ele, frio. — Confie em nós. O pastor João garante que o rapaz é um bom homem. Ele pode te fazer feliz.

— E como vocês podem saber o que me faria feliz se nem eu sei ainda?

Um silêncio sufocante tomou conta da sala. Minha tia olhava de um pro outro, perdida.

Tio Miguel foi o primeiro a quebrar o clima.

— A reunião já está marcada. Domingo, depois da missa. A senhora Lisboa vem almoçar aqui. Você vai conhecê-lo, conversar educadamente e dar uma chance pra essa amizade crescer.

Olhei pra ele, incrédula.

— E se eu me recusar?

— Você não vai se recusar — disse ele, com a voz firme como uma sentença. — Porque você é uma moça bem-educada, que respeita os mais velhos e confia em quem quer o seu bem.

Procurei apoio no olhar da minha tia, mas ela apenas baixou a cabeça.

— Tia? — sussurrei, desesperada.

— Ele é mesmo um bom rapaz, Bruna — ela respondeu, em voz quase trêmula. — E você precisa de alguém que te proteja das... influências erradas.

Tentei conter as lágrimas, mas a voz me saiu firme.

— Eu vou pro meu quarto.

Subi as escadas com o coração acelerado. Fechei a porta atrás de mim e me joguei na cama.

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