Mundo de ficçãoIniciar sessão
♡ Bruna Marques ♡
Acordei com o sol batendo direto no meu rosto, atravessando a cortina que nunca fecha direito. Revirei os olhos, ainda meio, sonolenta e suspirei, me esticando na cama com preguiça. Hoje não era um dia qualquer. Era o meu aniversário de 18 anos. Fiquei alguns segundos olhando pro teto, me lembrei dos meus doze anos, de quando senti o chão desaparecer sob meus pés. Meus pais morreram em um acidente de carro em uma noite chuvosa e, de repente, perdi o riso fácil, a leveza de cada dia e a liberdade que sempre conhecera. Passei a morar em um condomínio fechado, um dos mais caros da cidade. Ruas largas, portões altos. Todo aquele luxo só me fazia sentir mais sozinha, mais deslocada. A única pessoa da família que podia cuidar de mim era a tia Vera, e Miguel, o marido dela. Conservador até doer, acredita que uma moça deve ser invisível, muda e sem vontade própria. Miguel tinha uma lista mental do que uma "jovem decente" deveria ser: Não podia me exibir, não podia levantar a voz, mesmo quando tinha razão. Não podia questionar, jamais. Era como se ele quisesse me transformar numa boneca de porcelana, linda de se ver, mas sem vida própria. E a pior parte? A proibição total de sair sozinha. Desde que cheguei lá, virei praticamente uma prisioneira. Cada saída precisava ser negociada, justificada, supervisionada. Amigos? Que amigos? As tardes se arrastavam entre faxinas, livros aprovados pelo Miguel e um silêncio que pesava nos ombros como chumbo. Com o tempo, aprendi a aceitar. Não porque quisesse, mas porque lutar já não fazia sentido. Aquela casa, com suas regras sufocantes e seus olhares duros, era o único abrigo que me restava. Joguei as cobertas pro lado e levantei. Peguei uma toalha, prendi o cabelo num coque malfeito e fui direto pro banheiro. O espelho me mostrou uma versão meio amassada de mim mesma: olhos inchados, marcas do travesseiro no rosto. Ri sozinha e liguei o chuveiro. A água demorou pra esquentar, então deixei cair um pouco da fria mesmo. Arrepiei dos pés à cabeça, mas era bom, ajudava a acordar de vez. Entrei no box e fechei a porta de vidro, sentindo o vapor começar a se formar. Passei as mãos pelo rosto, deixando a água escorrer pelos ombros. Depois do banho, enrolei a toalha no corpo, fui até o guarda-roupa, abri a porta e peguei o vestido rosa de alcinhas e flores azuis que estava pendurado no cabide, meu preferido. Quando me olhei no espelho, ajeitando as alcinhas sobre os ombros, vi que em cima da penteadeira havia uma caixa toda embrulhada em papel perolado, com um laço de cetim cor-de-rosa. Me aproximei, e toquei a caixa. A superfície era lisa e brilhante. Com cuidado, desfiz o laço. O papel deslizou fácil, revelando outra caixinha menor, de veludo branco. Respirei fundo antes de abrir, e quando levantei a tampa, meus olhos brilharam. Lá dentro, repousava uma pulseira de prata, tão polida que refletia a luz do quarto em pequenos brilhos prateados. Era delicada, de elos finos e trabalhados, mas o que realmente chamava atenção eram os três pingentes pendurados nela: C, P e L. Cada letra era cravejada com minúsculas pedrinhas de cristal, cintilando a cada movimento. Passei os dedos devagar pelos pingentes, tentando adivinhar o significado daquelas letras. Então vi um pequeno envelope branco ao lado da caixa. Senti o coração bater mais rápido. Peguei-o com as mãos trêmulas e abri. A caligrafia firme e inclinada me fez prender a respiração: FELIZ ANIVERSÁRIO, COELHINHA. EM BREVE VOCÊ SERÁ NOSSA. NOSSA PARA PERTENCER. NOSSA PARA AMAR. Meu corpo inteiro estremeceu. “Coelhinha.” Só três pessoas me chamavam assim: Caio, Patrick e Luan. Meus vizinhos. Os irmãos Silva Rocha. Ah, esses sim faziam tio Miguel perder o sono! Moravam na casa mais bonita e cara do lugar, viviam sozinhos e transformavam as noites de sexta numa festa que fazia o condomínio inteiro se irritar. Os vizinhos reclamavam, mas nunca dava em nada, dinheiro tem dessas magias. Tio Miguel os chama de "endemoniados". Sou apaixonada por eles desde os quinze anos. Três idiotas bonitos, charmosos e completamente mulherengos. Foi numa dessas sextas que tudo mudou. Estava no portão com Lulu, a cachorrinha da família, quando o ronco das motos rasgou o ar. Três máquinas potentes, reluzentes, com três figuras que pareciam ter saído de um filme. Lulu, claro disparou em direção a eles, latindo como se fosse a dona do pedaço.Quase tive um infarto. A cachorrinha correndo no meio da rua, eu gritando o nome dela, e os três motoqueiros diminuindo a velocidade. Um deles desceu da moto e quando ele tirou o capacete, o mundo meio que parou. Cabelos loiros que brilhavam, olhos claros, era de tirar o fôlego. Pegou Lulu com um cuidado que não esperava, fazendo carinho na cabeça dela como se fosse um velho amigo. — Calma, garota — disse, caminhando em minha direção com Lulu nos braços. Consegui apenas, estender os braços para receber a cachorra. Nossos dedos se tocaram no momento da "troca", e juro que senti uma corrente elétrica subir pelo braço. — Obrigada — murmurei, baixando os olhos porque olhar diretamente para ele estava sendo impossível. — De nada, coelhinha — disse o loiro, colocando o capacete de volta. O apelido saiu tão natural, que senti o rosto pegar fogo na mesma hora. Percebi os outros dois, o ruivo tinha um sorriso travesso e olhos verdes, enquanto o moreno observava tudo com uma expressão mais séria, mas igualmente atraente. Todos pareciam saídos de uma revista, com seus cabelos bagunçados pelo vento e aquele ar de quem não pedia permissão para nada. Eles subiram nas motos, aceleraram em direção à casa deles, me deixando parada feito uma estátua. Lulu se mexeu nos meus braços, me trazendo de volta à realidade, mas meu coração ainda disparava como se tivesse corrido uma maratona. Eu sabia que eles não prestavam, todo mundo sabia. Viviam cercados de garotas diferentes, sempre rindo, sempre conquistando. Mesmo assim, bastava ouvir aquele “Coelhinha” pra eu derreter por dentro. Fiquei olhando o bilhete por alguns segundos, sem saber se ria, se me assustava ou se achava tudo aquilo uma loucura. “Ser deles?” O que eles queriam dizer com isso? Antes que pudesse pensar mais, uma batida seca soou na porta. — Bruna? — era a voz da minha tia. — Já vou! — respondi rápido, escondendo o bilhete dentro da gaveta da penteadeira. A porta se abriu devagar. Minha tia apareceu com aquele sorriso doce de sempre, e atrás dela, meu tio Miguel, sério como sempre, com o olhar firme e a postura rígida. — Feliz aniversário, querida — disse minha tia, me abraçando com carinho. Quando nos afastamos, percebi que o tio Miguel me observava com aquele olhar atento, quase avaliador. Seus olhos logo pararam na pulseira. — Quem te deu isso? — perguntou, a voz grave soando quase como uma ordem. Olhei para o pulso e depois pra ele. — Eu… não sei, tio. Quando saí do banho, encontrei a caixa em cima da penteadeira. — Não sabe? — ele arqueou as sobrancelhas. — Nada aparece do nada, Bruna. Minha tia tentou amenizar, tocando o braço dele. — Miguel, não assuste a menina. Hoje é o aniversário dela. Ele soltou um suspiro, mas não desviou os olhos de mim. — Não estou assustando. Só dizendo pra ter cuidado. Presentes assim raramente vêm sem intenção. Fiquei ali, sem saber o que responder. A pulseira parecia mais pesada agora. — É só uma pulseira, tio. — murmurei, tentando parecer despreocupada. Ele inclinou um pouco a cabeça, pensativo, mas não insistiu. — Que assim seja — disse por fim, num tom seco. — Só não esqueça: o mundo não é tão inocente quanto parece. Minha tia segurou minhas mãos e sorriu de um jeito que aliviou o clima. — Esquece isso, querida. É o seu dia. Temos um bolo esperando lá embaixo. Assenti, ainda com o coração apertado. Assim que eles saíram, sentei-me na beira da cama. O tecido leve do vestido rosa se acomodou na pele, e a pulseira reluzia sob a luz suave do quarto. Toquei de novo as três letras. C, P e L. Um arrepio percorreu meu braço. Era medo, curiosidade ou… expectativa? Nem eu sabia dizer. Respirei fundo e desci as escadas. O cheiro de bolo recém-assado tomou conta do ar. Minha tia estava sorridente, e tio Miguel, sentado à mesa, observava em silêncio, como sempre. Sobre a mesa, um bolo simples de frutas e um copo de água me esperavam. — Parabéns pra você, nesta data querida… — começaram a cantar. Minha tia empolgada, e ele acompanhando num tom mais contido. Senti um calor bom no peito. Por um momento, tudo parecia normal. — Obrigada — disse baixinho, sorrindo. — Faz um pedido, querida — disse minha tia, aproximando a vela acesa. Fechei os olhos. Senti o calor da chama e o peso do que eu queria. “Liberdade.” Foi o que pedi em silêncio. Soprei a vela. A chama se apagou, e um fio de fumaça subiu devagar, dançando no ar, leve, como se carregasse meu desejo junto com ela.






