Na Fazenda Volchya Dolina — manhã seguinteJoão chegou cedo. O sol mal despontava no horizonte russo, e a fazenda ainda estava coberta por uma neblina úmida e gelada. O carro parou diante da garagem e, ao entrar, ele encontrou Ana já tomando café com Augusto no jardim envidraçado.Ana ergueu os olhos calmamente por cima da xícara. Seu olhar atravessou João como uma lâmina afiada — sem julgamento, mas cheia de leitura silenciosa.— Dormiu bem, João? — perguntou ela, com aquela calma que fazia qualquer um se arrepiar.— Dormi sim, tia Ana. Resolvi umas coisas da empresa ontem à noite — respondeu ele, tentando manter o tom neutro.Augusto, sempre mais descontraído, deu um leve sorriso por trás do jornal, mas não disse nada.Logo depois, Clara e Emili desceram prontas. Emili bufava, resmungando como sempre. Clara, por outro lado, o observava com um sorrisinho enviesado.— Dormiu fora, João? Nem vi seu carro quando fui deitar — disse Clara, jogando o comentário no ar como quem não quer nad
Chegada à escola — manhã fria na cidadeO carro de Beatriz estacionou em frente à escola técnica. Amanda desceu primeiro, os cabelos presos em um rabo de cavalo alto, vestida com o uniforme e um casaco escuro sobre os ombros.Beatriz a seguiu com o mesmo brilho divertido no olhar, mas agora um pouco mais sóbria.— Vai com calma hoje. A escola vai comentar qualquer coisa. Ainda mais com aquele seu professor olhando pra você como se fosse obra de arte.Amanda riu, ajeitando a alça da mochila.— Bruno? Ele me conhece desde a Suíça. Acho que ele é só... cuidadoso.Beatriz arqueou as sobrancelhas e lançou um olhar provocativo.— Cuidadoso? Até parece que ele não ia te carregar nos braços se você deixasse.Amanda soltou um riso abafado.— Beatriz, chega. Vamos logo. Ainda tenho aula, trabalho com a Ana depois, e talvez... mais uma tempestade pela frente.As duas seguiram pelos corredores da escola, enquanto a movimentação dos alunos preenchia o ambiente com energia de Terça-feira. Amanda sa
🐍 Corredor da sede — poucos minutos depoisEnquanto Amanda descia as escadas apressada com a pasta e a mochila, Clara encostada na entrada da cozinha a observava como quem afia uma lâmina.João apareceu do lado de fora, pronto para levá-la. Quando Amanda passou, ele abriu a porta do carro. Antes que ela entrasse, Clara não resistiu:— Uau... além de diretor geral agora também é motorista particular? Que versatilidade, primo.João olhou para ela com um meio sorriso forçado.— Na verdade, é só um favor. Coisas de família, você entende.Amanda, já sentada, retrucou de dentro do carro:— Melhor motorista particular do que gente que vive de plantão em vida alheia.Clara manteve o sorriso, mas por dentro, fervia.O carro arrancou pela estrada da fazenda, enquanto o céu da Rússia começava a se cobrir com tons de lilás e chumbo. A noite prometia.Chegada ao curso técnico — Noite em MoscouO carro de João encostou em frente ao prédio moderno do colégio técnico. Amanda desceu com a pasta em mã
Saída do curso técnico — Moscou, noite friaAmanda desceu os degraus do prédio ao lado de Beatriz. O frio cortava o ar, e a cidade parecia mergulhada num silêncio denso. João já a esperava do outro lado da rua, encostado no carro com os braços cruzados. Ela acenou, se despediu de Beatriz com um beijo no rosto e atravessou.Assim que entrou no carro, percebeu no ar que algo estava errado.— Oi... — disse ela, fechando a porta.João não respondeu de imediato. Apenas ligou o motor e começou a dirigir, em silêncio, com o maxilar travado.— Vai me ignorar agora?— Não tô te ignorando. Só tô tentando entender algumas coisas.Amanda o encarou, sem entender de imediato.— Que coisas?— O professor. O jeito como ele te olha. E você rindo das piadinhas da Beatriz como se fosse tudo normal. Parece que sou o único que se incomoda.Ela cruzou os braços.— Você tá falando sério? Você tava me espiando?— Eu fui te levar e vi o suficiente. Ele vive te elogiando, te puxando pra perto... Eu não sou idi
Manhã na Fazenda – Confronto no corredorA luz do amanhecer mal começava a atravessar as janelas da Fazenda Volchya Dolina. O silêncio ainda dominava os corredores, interrompido apenas pelo som leve do ranger da madeira sob os pés de João.Ele abriu a porta do quarto de Amanda devagar, ainda com os cabelos molhados do banho da noite passada e a camisa semiaberta. Seus olhos estavam cansados, mas seu corpo parecia leve — como quem havia atravessado um furacão e saído inteiro, apesar dos estragos.Deu um passo no corredor.Foi quando ouviu o som firme de saltos ecoando no piso encerado.Virando-se, deparou-se com Ana Duarte.Ela vinha em sua direção, elegante como sempre, vestida já para o trabalho na fazenda, segurando uma pasta sob o braço. Seus olhos, afiados como navalhas, pousaram diretamente nos de João. Não disse nada de imediato.O ar entre eles pesou.João respirou fundo, parou no meio do corredor e manteve a postura ereta. Sabia que não havia como fingir, nem para ela, nem par
Fim de tarde – Estacionamento da faculdadeJoão esperava no carro, com o rádio ligado baixo, enquanto Clara saía do prédio da faculdade. O céu de Moscou estava começando a tingir-se com os tons alaranjados do pôr do sol, e uma brisa fria passava pelas ruas.Clara entrou no carro com sua bolsa atravessada e o jaleco dobrado no colo. Tirou o elástico do cabelo e comentou, quase distraída:— Você está esquisito desde o almoço, João. Aconteceu algo?João apenas deu partida no carro, seco:— Nada demais.Enquanto dirigia em direção ao colégio técnico para buscar Amanda e Emili, os olhos de João escaneavam cada esquina como se procurasse algo. Ou alguém.Ao se aproximarem do colégio...De repente, do outro lado da rua, João avistou Amanda. Ela estava em pé, encostada numa das mesas externas da sorveteria com Beatriz, Eduardo e Bruno. Ria de algo que Bruno dizia. O professor segurava dois sorvetes, um para ele e outro para Amanda.João pisou no freio de leve, o carro desacelerando quase que
Escritório da sede – Ainda a noite, instantes após o "chamado"João ajeitou a gola da camisa amassada, passou a mão pelos cabelos e abriu a porta com o máximo de naturalidade que conseguiu reunir. Amanda estava atrás dele, já sentada à mesa, fingindo rever um dos relatórios — impecável como se nada tivesse acontecido.Ana entrou com a postura ereta, olhos atentos, braços cruzados. Trazia consigo uma pasta preta fina, documentos administrativos. Mas o olhar... o olhar percorreu o ambiente como se farejasse a verdade.— Interrompi alguma coisa? — perguntou com um leve levantar de sobrancelha, o tom suave demais para ser despretensioso.João respondeu com um sorriso sem graça:— Só estávamos resolvendo uns detalhes da planilha de custo do novo lote de reprodutores.Ana não disse nada de imediato. Apenas se aproximou da mesa, depositou os documentos com calma e olhou direto para Amanda.— Amanhã cedo temos reunião com o contador russo e com o representante da Embaixada Suíça. Preciso que
A noite seguiu embalada por músicas suaves, vozes em conversas calorosas e o tilintar de taças brindando aos bons momentos. Os empregados da fazenda haviam preparado uma ceia impecável: pratos tradicionais russos misturados com receitas suíças e toques da culinária brasileira que Amanda fizera questão de incluir — um símbolo sutil de suas raízes múltiplas e do quanto ela pertencia, com orgulho silencioso, àquela casa, àquela história.Bruno, elegante, movia-se entre os convidados com naturalidade, mas seus olhos sempre voltavam para Amanda. Ele percebia algo ali — algo que os outros fingiam não ver, ou não sabiam nomear. José, atento, o chamou para junto da lareira.— Você ainda é o mesmo, Bruno? — perguntou, com um sorriso cordial, mas os olhos faiscavam com aquela sabedoria amarga que os velhos adquirem.Bruno soltou uma risada curta.— Talvez um pouco mais ambicioso. Um pouco mais experiente.— E um pouco mais interessado em... Amanda?Bruno não respondeu. Apenas ergueu a taça, bri