Mundo de ficçãoIniciar sessãoDois meses haviam se passado desde o aniversário de Bianca. A rotina pouco mudara. Esther continuava levantando antes do amanhecer para acender o fogo e preparar o café, enquanto Lúcia cuidava da limpeza e tentava, sempre que podia, arrancar um sorriso de Bianca.
A menina crescia em silêncio. Passava horas desenhando em folhas amareladas, ou sentada na muralha, observando o horizonte como se esperasse que, a qualquer momento, um barco trouxesse seu pai de volta. Mas nenhuma carta havia chegado desde aquela última — a que dizia que o dinheiro enviado teria de durar três meses e que ele não viria para o aniversário dela.
Naquele final de tarde, Bianca estava na cozinha ajudando Lúcia a descascar batatas, quando Esther entrou trazendo uma sacola de compras. Depositou-a sobre a mesa e disse, sem rodeios: — O que tínhamos acabou. Vamos ter que apertar ainda mais. Usei as ultimas economias do meu salario.
Lúcia soltou um suspiro cansado, e Bianca, mesmo sem entender todos os detalhes, percebeu o peso da frase.
Lúcia enxugou as mãos no avental, aproximou-se de Esther e falou em tom baixo, com um semblante preocupado: — Esther… não tem mais jeito. Você precisa escrever para o Alberto. — Escrever o quê? — perguntou Esther, sem tirar os olhos da sacola. — Dizer a verdade. Que as economias acabaram. Que não vai ter dinheiro nem para comprar comida esse mês.
Esther suspirou fundo, apoiando as mãos na mesa. — E você acha que ele vai se importar? — Se não se importar, pelo menos vai saber. Não podemos fingir que está tudo bem enquanto a dispensa está vazia. — Eu já mandei tantas cartas… — murmurou Esther, com um tom de cansaço. — Na última, ele só respondeu falando do dinheiro que mandou e nada mais. — Mesmo assim, escreva outra. É a única chance que temos — insistiu Lúcia. — Por ela.
Esther olhou para o canto da cozinha, onde Bianca cortava silenciosamente as batatas, alheia ao peso da conversa. O olhar firme de Lúcia não deixava espaço para recusa. — Está bem — disse Esther, enfim. — Eu escrevo amanhã.
Bianca terminou seu trabalho em silêncio, mas sentia o ar pesado dentro da cozinha. Com um nó na garganta, lavou as mãos no balde de água fria, lançou um olhar rápido para as duas e, sem dizer nada, seguiu para a porta.
Do lado de fora, a brisa cortante e o cheiro do mar a envolveram. Sentia uma necessidade quase física de respirar longe daquela conversa. Ao se aproximar da praia, avistou Gustavo vindo na direção contrária, com o mesmo ar de desdém que sempre carregava.
— Olha só quem apareceu… a princesinha do casebre — provocou, com um sorriso torto. — Ainda esperando seu papai rico te buscar?
Bianca sentiu o rosto arder, mas não respondeu. Apertou o passo, passando por ele sem encará-lo, e continuou andando até que seus pés encontraram a muralha. Lá, sentou-se e deixou que o vento levasse embora as palavras dele — ou, pelo menos, tentasse.
Ficou ali até o céu escurecer, o mar engolindo os últimos tons de laranja. Só então voltou para casa. Encontrou Lúcia dobrando roupas na sala e Esther mexendo algo no fogão. Nenhuma das duas comentou sobre sua ausência, mas Bianca percebeu que a lareira havia sido acesa e que um prato com um pedaço de pão a esperava sobre a mesa.
Sentou-se em silêncio, mordendo o pão devagar. Não precisava de palavras — naquele momento, o simples cuidado delas era suficiente para afastar, ainda que por instantes, o peso das coisas que não podia mudar. Esther cumpriu a promessa e escreveu para Alberto na manhã seguinte. Usou poucas palavras, como se tivesse medo de gastar tinta à toa, mas foi clara sobre a situação. Dois dias depois, a carta estava no correio da vila. Depois, restou apenas esperar — e esperar, para Bianca, era quase um hábito tão antigo quanto respirar. Quase duas semanas se passaram até que o som das botas do carteiro ecoou no caminho de pedra. Ele não entrou, apenas deixou o envelope amarelado na soleira e seguiu adiante. Esther abriu ali mesmo, as mãos ligeiramente trêmulas. Dentro, além da carta, havia um maço de notas. — É suficiente para até o fim do ano… se a gente cuidar bem — disse, mais para Lúcia do que para Bianca. — Mas não esperem fartura. Bianca olhou de longe, sem perguntar nada, sem saber ao certo se ficava aliviada ou decepcionada. Sabia que o dinheiro era necessário, mas também sabia que não comprava aquilo que mais desejava: a presença do pai. Apenas registrou mentalmente que, por algum tempo, não teria de ver Esther e Lúcia contando moedas antes de cada compra.
Os dias seguiram, e, embora o dinheiro trouxesse algum alívio, a rotina se mantinha dura. O inverno começou a se despedir, mas a despensa encolhia mais rápido do que o previsto. A cada refeição, porções menores eram servidas, e as prateleiras iam ganhando espaços vazios que pareciam crescer durante a noite. Foi nessa atmosfera de cuidado excessivo e silêncios mais longos que algo começou a se mover — não um vento vindo do mar, mas um daqueles acontecimentos que mudam tudo, mesmo antes de a gente perceber. Naquela manhã, o vento soprava do mar com cheiro de sal e algas secas. Bianca estava sentada na muralha, desenhando, quando uma voz grave soou às suas costas:
— Você é a filha do Alberto?
Ela se virou devagar. Um homem alto, de barba por fazer e casaco gasto, a observava. Os olhos eram escuros e atentos, mas carregavam uma sombra difícil de decifrar.
— Sou… quem é o senhor? — perguntou, abraçando o caderno contra o peito.
— Um amigo dele. Ou… fui, há muito tempo. — O homem ajeitou o chapéu, desviando o olhar para o mar.
— Ele está aqui? — a pergunta saiu quase num sussurro.
— Não — respondeu Bianca, encolhendo os ombros.
O homem coçou a barba e disse:
— Vi ele em um porto próximo… achei que tivesse passado aqui alguns dias. Parecia tratar de negócios com alguns donos de embarcações.
Bianca sentiu o coração apertar. Um porto próximo… tão perto, e mesmo assim ele não viera. Uma pequena chama de esperança se acendeu, mas foi logo cercada por uma sombra de dúvida e decepção. Se estivera tão perto, por que não veio vê-la?
O homem manteve o olhar perdido no horizonte, como se já tivesse dito o suficiente. Despediu-se com um aceno breve e seguiu pela estrada de pedra até sumir na curva.
Ela permaneceu ali, olhando o vazio onde ele estivera, tentando entender se já haviam se passado muitos dias desde o encontro entre os dois. No fundo, algo lhe dizia que talvez nunca soubesse há quanto tempo aquilo acontecera.
Na tarde seguinte, o tempo mudou. Nuvens pesadas se acumularam no horizonte, e logo o vento uivava pelas frestas do casebre. As ondas batiam contra as pedras com uma força quase violenta, espalhando espuma que se misturava à chuva. Bianca assistiu da janela, abraçando a boneca de pano, enquanto o mar parecia querer engolir o mundo.
Quando amanheceu, a tempestade havia cessado, mas a vila estava estranhamente silenciosa. Foi na feira, onde Lúcia fora comprar suprimentos, que soube da notícia: o barco de pescaria de Tomás e Miguel não havia voltado.
Bianca conhecia Miguel de vista; ele sempre acenava quando passava pela muralha, voltando da pesca com a cesta cheia.
— Disseram que encontraram pedaços do casco perto das pedras do Farol — contou Lúcia ao chegar, a voz baixa e tensa. — Mas deles… nada.
Durante dias, as buscas continuaram. Bianca ia até a muralha e olhava o mar como se, a qualquer momento, eles pudessem surgir, acenando de longe. Mas só via gaivotas e espuma branca.
Naquele silêncio pesado, percebeu que o mar podia guardar coisas para sempre — assim como a vida guardava ausências que nunca voltavam. Mas a vila seguia, e as estações não paravam. O fim do verão se aproximava, trazendo com ele não apenas o vento frio do outono, mas também a lembrança de que o período de aulas estava para começar. Para Bianca, essa volta não tinha o sabor leve que via nos sorrisos de outras crianças.







