POV: Kael
O silêncio da floresta era quase reconfortante, se não fosse tão incômodo. A brisa soprava entre as árvores altas e ressecadas, levando com ela o cheiro de terra e lembranças antigas que insistiam em me perseguir. Meus pés descalços tocavam a grama fria, mas eu mal sentia. Havia dias em que eu vagava para longe da vila, alegando patrulhas ou treinamento, apenas para fugir de mim mesmo. Desde que Ayra desapareceu, uma parte minha morreu, embora eu me recuse a admitir isso em voz alta. A rejeição deveria ter sido o ponto final entre nós. Ela escolheu ir embora. Escolheu virar as costas para mim, para nossa alcatéia. Para o nosso vínculo. Mesmo assim, toda vez que fecho os olhos, ainda vejo os dela. Furiosos. Partidos. Mas a vida seguiu. Reina fez questão disso. — Está frio aqui fora. Vai ficar se escondendo de mim o dia todo, Kael? A voz dela cortou meus pensamentos. Reina, envolta em um robe de tecido leve que deixava pouco à imaginação, caminhava em minha direção. Seus cabelos escuros estavam soltos, caindo pelos ombros, e seus olhos âmbar me analisavam com um misto de irritação e provocação. Ela era bonita. Sempre foi. Tinha o corpo curvilíneo, a pele morena quente ao toque, e um cheiro doce de pêssego, que tentava rivalizar com outros aromas naturais de uma ômega. Mas não era Ayra. — Não estou me escondendo. Respondi seco, virando o rosto. Reina riu baixo, como se já conhecesse minha resistência e não se importasse. — Você se cala, mas seu corpo fala por você, ela sussurrou, se aproximando até que seus dedos tocassem meu abdômen. — Toda vez que me toca, Kael, você se entrega. Fechei os olhos por um momento. Era verdade. Meu corpo respondia a ela, mesmo que minha alma gritasse por outra. Reina sabia disso. Usava isso. Ela nunca exigiu amor, apenas presença. Talvez fosse por isso que ainda estava aqui. — Isso não significa nada. Murmurei, afastando sua mão. — Claro que não. Ela riu, mas a amargura na voz era evidente. — Você deixou claro desde o início. Mas não mente pra mim. Você me quer. Mesmo que não queira admitir. Suspirei, passando a mão pelos cabelos. Depois que Ayra desapareceu, Reina surgiu como uma sombra constante. Estava ali para cuidar das tarefas, ajudar os anciãos, oferecer apoio. Aos poucos, ocupou o espaço que Ayra deixou, não no coração, mas ao meu redor. Nos corredores, nas noites frias, na minha cama. Mesmo quando ainda estava com Ayra, tinha vezes que preferia ficar com Reina. Era cômodo. Era fácil. E eu estava cansado de lutar contra um fantasma. Mas Reina não era ingênua. Sabia que cada toque meu era mecânico. Cada suspiro arrancado era vazio. Ainda assim, continuava. Talvez, no fundo, ela achasse que um dia bastaria. — Você já pensou nela hoje? Reina perguntou, me encarando. Fiquei em silêncio. O vento voltou a soprar, e meu peito apertou. — Você nunca parou de pensar nela, não é? — Ela escolheu ir embora. Foi tudo o que consegui dizer. Reina deu uma risada curta, magoada. — Não. Você a empurrou para longe, Kael. Por medo. Por orgulho. Você a rejeitou antes que ela pudesse te rejeitar. Você a traiu pelas costas dela quando se deitava comigo e depois, traiu ela na frente do concelho, quando negou o vínculo. Virei o rosto, os olhos queimando. Não queria ter essa conversa. De novo. — Já chega, Reina. — Não. Você vai me ouvir. Ela se aproximou, a voz falhando levemente. — Eu estou aqui. Sempre estive. Mas você só me toca quando está quebrado. Você me procura à noite e finge que sou ela. E eu aceito. Porque sou uma idiota apaixonada por um alfa que nunca vai me amar. Engoli em seco. Reina se afastou um passo, a respiração acelerada. — Eu não quero mais seus toques vazios, Kael. Eu quero ser vista. Desejada. Não comparada. E você… você continua preso naquela maldita ômega que te desprezou! As palavras bateram em mim como garras. Parte de mim queria gritar que Ayra nunca me desprezou. Que ela me amou como ninguém. Que eu a afastei por medo de perdê-la. E a perdi mesmo assim. Mas o orgulho, esse maldito orgulho, me calou. — Se está tão insatisfeita, por que ainda está aqui? rebati, a voz fria. Reina me olhou como se eu tivesse lhe dado um tapa. — Porque eu te amo, seu imbecil! gritou. — Porque mesmo sabendo que você é um homem quebrado, eu achei que poderia consertar alguma coisa. Que com o tempo, você olharia pra mim… como olhava pra ela. Ela virou as costas, e antes de sair, murmurou: — Mas você não vê ninguém além dela. Nem mesmo a si mesmo. Fiquei ali, parado, como uma estátua. A floresta ao redor parecia me engolir em silêncio. As palavras dela ecoavam como trovões na minha mente. Era verdade. Eu não via Reina. Nem qualquer outra fêmea. Apenas Ayra. Ayra, com seus olhos desafiadores, seu cheiro de morangos e rosa selvagem, seu temperamento tempestuoso. Ayra, que me desafiava, que me fazia sentir, que conhecia cada parte de mim, até mesmo as que eu escondia de mim mesmo. E talvez eu nunca deixasse de vê-la. Mesmo que ela estivesse morta. Ou, pior… viva, mas longe de mim por minha própria culpa. Suspirei fundo, sentindo o cheiro distante da chuva se aproximando. Voltei para a vila ao anoitecer, quando já era tarde demais para qualquer desculpa. Reina não estava no quarto. Pela primeira vez, não me esperava. Sentei-me na beira da cama e encarei o vazio. Mesmo cercado de tantos… eu nunca me senti tão sozinho.