POV: Ayra
Desde a ameaça de sermos localizados pela matilha de Kael, Aruk permaneceu em alerta constante. Durante o dia, treinava os mais jovens da alcateia com a paciência de um líder experiente; à tarde, saía com os batedores, vasculhando os arredores em busca de qualquer sinal de aproximação inimiga. Eu estava sentada sobre uma pedra lisa, observando Lucian brincar alegremente com as outras crianças no riacho, quando senti braços fortes me envolverem por trás. Antes que meu corpo reagisse por instinto, o cheiro familiar de menta e chuva invadiu meu olfato, relaxando meus músculos. — Te assustei? A voz rouca de Aruk soou próxima ao meu ouvido, como um sussurro arrastado. Meu coração acelerou por um instante, mas me afastei com calma, disfarçando a agitação com um olhar firme. Ele sorriu de canto, quase provocativo, como se soubesse o efeito que tinha sobre mim. — Até parece. Senti sua presença de longe. Respondi, voltando minha atenção a Lucian. Aruk riu baixo, divertido, mas permaneceu em silêncio por um momento, apenas observando ao meu lado. O som da água correndo e das risadas infantis preenchia o ar. — Encontraram alguma coisa? perguntei, séria. Ele suspirou pesadamente, coçando o queixo com os dedos longos. — Nada. Nenhum rastro, nenhum cheiro. Mas ainda não vou desistir. Continuaremos investigando. Meu maxilar se contraiu. A frustração queimava em meu peito. — Precisamos agir, Aruk. Não podemos esperar que eles nos encontrem primeiro. Falei, me virando para o encarar. Meus olhos, intensos, refletiam a raiva que eu tanto tentava esconder. — Eu entendo o que você sente, Ay. Sei que sua sede de vingança é justa. Mas temos crianças, idosos e famílias inteiras sob nossa proteção. A matilha precisa de equilíbrio e segurança antes de qualquer confronto. Apenas, confie em mim, sim? Mordi a parte interna da bochecha, ciente de que ele estava certo, como sempre estava. — Espera aí... você me chamou de quê? Um sorriso cresceu em seu rosto, mais suave agora. — Ay. Um apelido carinhoso... para minha tempestade pessoal. Senti o calor subir para o meu rosto. A forma como ele disse aquilo... simples, mas cheia de intenção. Antes que eu conseguisse retrucar, Lucian correu na nossa direção com os pés molhados e um sorriso iluminado. — Papai! exclamou, jogando-se nos braços de Aruk. Ele o levantou com facilidade, girando-o no ar enquanto ria junto com o menino. A cena, tão natural, tão doce... quase me fez esquecer que aquele homem não era realmente o pai do meu filho. Mas talvez, de alguma forma, fosse. Lucian se jogou nos braços do Alfa com um pequeno sorriso. — Papai! sua voz infantil ecoou como uma flecha certeira direto no meu peito. Aruk o ergueu com facilidade novamente, girando o menino no ar antes de apertá-lo em um abraço forte. A risada de Lucian soou clara, livre… inocente demais para o mundo em que vivíamos. — Olha só o guerreirinho da mamãe. Aruk disse, beijando a bochecha suja de terra do menino. — Sujou tudo de novo? — Eu virei um lobo e fui o mais rápido! ele se gabou, os olhinhos brilhando de empolgação. — A tia Mel disse que eu sou forte igual você, papai. Tia Mel. Forte. Papai. Essas palavras se embaralharam na minha cabeça, revirando uma tempestade antiga. Aruk me olhou por cima da cabeça de Lucian, com os olhos cinzentos atentos aos meus. Ele sempre soube ler meus silêncios. — Vai correr mais um pouco, campeão? ele perguntou a Lucian, pousando-o de volta no chão. — Vou sim! Mas depois quero pão com mel. E saiu correndo entre as árvores, em direção às outras crianças. Fiquei observando meu filho desaparecer por entre a vegetação baixa, o coração apertado. Ele nem fazia ideia da verdade. Da sombra do pai verdadeiro. De todo sangue que foi derramado antes do seu primeiro choro. — Ele te ama. Aruk falou, quebrando o silêncio. — E ama a mim também. Não porque eu pedi… mas porque ele sente segurança. Cruzei os braços, ainda olhando para o riacho. — Eu nunca disse que não confio em você, Aruk. Só... respirei fundo, me forçando a ser sincera. — Só não sei até quando podemos manter essa mentira. — Isso não é mentira, Ayra. Ele se aproximou, agora sério. — Posso não ser o pai de sangue, mas sou o homem que o ensinou a caminhar, a controlar os impulsos, a proteger quem ama. Virei para encará-lo, sentindo um peso se formar no peito. — Mas e se ele descobrir? E se Kael descobrir? Você viu o quanto ele está mais próximo. Não vai demorar muito até que rastreiem alguma coisa. Os olhos de Aruk endureceram, e pela primeira vez em dias, vi o Alfa emergir por trás da calmaria. — Se Kael ousar pôr um pé neste território, eu juro que… — Ele ainda é o pai do meu filho, Aruk. interrompi, sentindo a garganta arder. — E parte de mim... ainda não sabe como lidar com isso. Ele me olhou longamente, a raiva esmaecendo aos poucos em um cansaço contido. — Não vou pedir pra esquecer o que vocês viveram. Sei que não posso. Mas também não vou recuar. Sua voz era firme, baixa. — Enquanto Lucian me chamar de pai com aquele sorriso, enquanto você permitir que eu esteja ao lado de vocês, não vou desistir. Um silêncio se estendeu entre nós, pesado… e cheio de tudo que nunca foi dito. — Venha jantar conosco hoje. Ele disse, mais calmo. — Mel preparou aquela carne com raízes que você gosta. — Vou pensar. Murmurei, desviando o olhar. Mas ele já conhecia esse "Vou pensar". Era o mais próximo que eu conseguia chegar de um "sim" quando minhas defesas estavam frágeis. Aruk assentiu, sem insistir. Apenas se afastou com um último olhar para o riacho. Fiquei ali, sozinha… ou quase. O vento balançava as folhas das árvores, e algo no ar me deixava inquieta. Um cheiro distante. Uma sensação conhecida que provocava calafrios na espinha. Kael. A simples lembrança dele me fez estremecer. Algo me dizia que o tempo da calmaria estava prestes a acabar.