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CAPÍTULO 1: O SABOR DO DESPREZO
A dor era uma presença constante, um fio de agulhas de gelo costurado em suas entranhas. Livia conseguia senti-lo até nas pontas dos dedos, um formigamento fraco que a lembrava, a cada instante, de que sua própria essência estava murchando. Ela se concentrou nos veios da mesa de madeira da Grande Sala, traçando os desenhos naturais com os olhos, tentando desesperadamente ignorar o peso do olhar de Matheus sobre Julia. A reunião do conselho da Alcateia Lua Prateada estava em pleno andamento. O ar estava pesado com o cheiro de pinho, terra molhada e uma tensão não dita. "—e acreditamos que os caçadores estão se movimentando a leste, além do Rio das Sombras," o Beta Rodrigo estava dizendo, sua voz grave ecoando nas vigas de madeira. Matheus, reclinado em sua cadeira alta, fez um som pensativo. Seus ombros largos bloqueavam parte da lareira para Livia, projetando uma sombra que ela sentia cair sobre si mesma. "Julia," ele disse, e sua voz, que para Livia era sempre um corte, para a irmã soava suave como seda. "O que seus instintos te dizem? Você sente alguma coisa?" Julia, sentada à direita de Matheus – o lugar que, por tradição, era da Lua –, inclinou a cabeça com uma graça estudada. Seus cabelos loiros brilhavam como ouro sob a luz do fogo, um contraste gritante com as madeixas castanhas e comuns de Livia. "Sinto uma perturbação, Matheus," Julia começou, sua voz uma melodia cuidadosamente orquestrada. "Não é agressão... mas é medo. Os animais da floresta estão inquietos. Talvez não seja uma ameaça direta, mas um aviso. Devemos enviar um pequeno grupo de observação, não um esquadrão de guerra. Mostrar força, mas não hostilidade." Matheus assentiu, seu rosto severo suavizando-se em algo que beirava a admiração. "Sábio. Como sempre." Uma pontada mais forte, afiada como uma lâmina, cortou o baço-ventre de Livia. Ela cerrou as mãos no colo, as unhas cravando-se em suas próprias palmas. A loba dentro dela uivou de angústia, um som que só ela podia ouvir. A análise de Julia era superficial, baseada em lugares-comuns, mas Matheus a tratava como se fosse a própria sabedoria da lua. Ela respirou fundo, o ar parecendo espesso. "Matheus," sua voz saiu mais fraca do que gostaria. Ela limpou a garganta e tentou novamente. "Matheus, o Rio das Sombras é raso nesta época. Uma patrulha pequena pode ser pega em terreno aberto. Os caçadores usam rifles de longo alcance. É melhor enviar os lobos pela floresta densa a norte e flanqueá-los visualmente. Segurança, não apenas observação." O silêncio que se seguiu foi mais cortante que qualquer repreensão. Matheus virou a cabeça lentamente, e seus olhos, da cor de uma tempestade, finalmente pousaram nela. Não havia calor neles. Apenas um fastidio resignado. "Sua cautela é... notada, Livia," ele disse, e seu nome soou como um insulto em sua boca. "Mas a sugestão de Julia é mais sutil. Menos confrontadora. Vamos seguir com a observação." Julia lançou a Livia um sorriso pequeno e rápido, um relâmpago de triunfo que só ela pôde ver. "Às vezes, irmã, a garra não é a melhor solução. É preciso ter tato." Livia baixou a cabeça, o sabor do desprezo amargo em sua língua. A dor no peito aumentou, uma pressão sufocante que fazia com que cada respiração fosse uma vitória. Ela podia sentir o vínculo, aquela corda de energia prateada que a ligava a Matheus, ficando mais opaca, mais frágil. Cada rejeição, cada olhar frio, era um golpe de martelo nesse elo. Ela se levantou silenciosamente, sua cadeira raspando no chão de pedra. Ninguém a notou sair. A sombra de Matheus já a havia engolido por completo. Ao passar pelo corredor que levava aos aposentos, ela ouviu a voz animada de sua mãe. "—e o vestido de Julia para o festival da lua cheia! Ela vai estar deslumbrante. É uma pena que Livia não tenha o mesmo... brilho." Seu pai respondeu com um riso baixo. "Cada um tem seu dom, querida. Julia tem a luz. Livia tem... sua seriedade." Livia apertou o passo, desviando para um pátio externo. O ar frio da noite bateu em seu rosto, mas não conseguiu lavar a vergonha e a dor. Ela cambaleou até uma muralha de pedra, encostando-se nela, suas pernas tremendo. Olhando para a lua, pálida e distante no céu, ela sussurrou para a parte de si mesma que estava morrendo. "Até quando?" perguntou à sua loba. "Até quando vamos suportar isso?" A única resposta foi um silêncio cada vez mais profundo, um vazio que crescia dentro dela, consumindo tudo. A Lua da Alcateia Lua Prateada estava se apagando, e ninguém, além dela, parecia se importar.






