Início / Lobisomem / A LUNA DO ALFA SEM VOZ / ✦ CAPÍTULO 3 — O ECO E O SANGUE
✦ CAPÍTULO 3 — O ECO E O SANGUE

A primeira coisa que Helena ouviu não foi um som.

Foi o calor — o estalo manso do braseiro, o suspiro das peles secando, o corpo lembrando que ainda era corpo.

Abriu os olhos com cautela. A pedra do teto brilhava em prata, devolvendo a luz da manhã.

A marca no ombro ardia em batidas lentas, sincronizadas com algo que não era só seu coração.

Tentou sentar-se. O quarto oscilou, como se o castelo respirasse.

Um jarro de água, um pano limpo, ervas amargas.

E, à distância, passos medidos — sem pressa, sem ruído.

Ele.

Kael apareceu no umbral como se surgisse de dentro da pedra.

Torso coberto por couro escuro, os cabelos ainda úmidos, a cicatriz riscando a garganta com um brilho pálido.

Os olhos dele a varreram por inteiro, não como um homem olha uma mulher, mas como um lobo reconhece um território que prometeu proteger.

Helena levou a mão ao manto que a cobria — o mesmo cheiro de pinho e fumaça da noite anterior.

A voz saiu fina:

— Onde estou?

Kael não respondeu.

Aproximou-se dois passos, pousou o jarro ao lado da cama e, com um gesto do pulso, permita.

Helena ergueu o queixo, teimosa.

— Consigo sozinha.

Ele assentiu. Recuou.

Ela molhou o pano e o levou à testa. O frio atravessou a pele como lâmina limpa.

— Quem me trouxe?

Silêncio.

O olhar de Kael foi até a marca em seu ombro. Então ele tocou a própria cicatriz, depois o chão, depois o peito.

Triângulo de ar. Eu—terra—tu.

Antes que Helena decifrasse, a porta se abriu.

Erynn, a anciã, entrou com Ronan. As linhas no rosto dela pareciam esculpidas pela própria neve.

— O Conselho do Vento chegou — disse Erynn, sem preâmbulos. — Querem te ver antes do meio-dia.

Ronan permaneceu junto à parede, olhos duros.

— Vieram três. Maelor, Sigrid e Halv. Não são amigos.

Helena franziu o cenho.

— Conselho do Vento?

— Os que escutam o Norte quando os homens esquecem — explicou Erynn. — Acham que a tua marca é uma fenda. E fendas atraem dentes.

Ela quis rir, mas o corpo não deixou.

— Eu não pedi nada disso.

— Ninguém pede — disse a anciã, sem gentileza nem pena. — Mas és chamada. E chamados se pagam.

Kael ergueu a mão. A palma para baixo, cortando o ar: basta.

Erynn fechou a boca.

Por um instante, o quarto ficou só de respirações.

Helena sustentou o olhar do Alfa.

— Vão me julgar?

Ele inclinou a cabeça: sim.

— E você?

A resposta veio num gesto que era quase uma oração: mão ao coração, depois ao vazio entre eles, depois aos próprios lábios — guardar.

Helena entendeu: ele ficaria. Mesmo que não pudesse falar.


O salão do Conselho era frio como lâmina lavada.

Três estandartes pendiam do teto — o do vento, o do gelo e o do lobo.

Maelor, alto e ossudo, tinha olhos como pregos.

Sigrid, cabelos brancos até a cintura, segurava um colar de dentes antigos.

Halv, o mais jovem, mantinha as mãos cruzadas nas costas — postura de quem quer parecer pedra.

Helena entrou envolta no manto do Alfa.

Ronan vinha um passo atrás; Erynn, dois à frente.

Kael já estava no centro, imóvel, cravado no chão como raiz.

— Esta é a mulher — disse Maelor, sem saudação. — A que sangra luz.

Sigrid a observou como se olhasse uma fogueira: com fascínio e cautela.

— A marca canta, mesmo calada.

Halv inclinou a cabeça.

— Dizem que o Sul a quer.

Helena respondeu antes de pensar:

— O Sul não me tem.

— Ainda — corrigiu Maelor.

Kael girou o pulso. Cala-te.

Helena mordeu a própria língua, furiosa.

Erynn quebrou o gelo com voz baixa:

— A marca respondeu ao rugido do Alfa. O Norte a reconheceu.

— O Norte reconhece muitos brinquedos antes de quebrá-los — rosnou Maelor.

Helena deu um passo à frente.

— Não sou brinquedo.

— És ponte — retrucou Sigrid. — E pontes ruem quando o rio decide crescer.

A marca no ombro de Helena respondeu, acesa.

A sala pareceu ficar menor.

Maelor aproximou-se, dedo em riste.

— Mostra o selo.

Ronan adiantou o corpo, mas Kael já havia se movido.

Fora só um passo — e, ainda assim, o ar mudou.

Ele ergueu a mão na altura do peito, aberta, firme: não.

Maelor riu, seco.

— O mudo dita a ordem?

A cicatriz de Kael brilhou como lâmina sob neve.

Ele não piscou.

Sigrid suspirou.

— O Sul sussurra de novo. Homens do eco rondam nossos limites. A fenda no ombro dela pode ser janela.

Erynn tocou o cajado no chão, três vezes.

— E também pode ser vedação. Não saberemos até que a voz acorde.

Helena sentiu o corpo gelar.

— Que voz?

Erynn a fitou como quem olha um abismo que, cedo ou tarde, precisará cruzar.

— A que ficou presa quando o Alfa gritou. A que as montanhas guardaram. A que dorme no teu sangue.

Silêncio.

Mesmo o fogo pareceu respeitar.

Maelor rompeu:

— Proponho que a confinemos na Tenda do Vento, sob vigília. Se for fenda, fechamos. Se for vedação, rezamos.

Helena deu um passo.

— Não serei trancada.

— És perigosa.

— Então perguntem ao perigo o que ele quer.

O dedo de Maelor tocou o vazio a um palmo do ombro dela — tão perto que o frio queimou.

— O que queres, marca?

A pergunta caiu como pedra no lago.

A dor subiu como água fervendo.

Helena levou a mão ao ombro. O selo brilhou sob a pele, pulsando rápido demais.

As tochas vacilaram.

Os lobos lá fora uivaram, inquietos.

E, do fundo da garganta de Helena — que julgava vazia — subiu um som.

Não era palavra.

Não era grito.

Era eco.

Vibrou no teto, nos estandartes, nos ossos.

O chão tremeu.

O gelo de uma janela estalou em veias.

Ronan levou a mão à espada por instinto, depois recuou, assustado com si mesmo.

Sigrid abriu os olhos, ofegante.

— Pelas velhas luas…

Halv cambaleou, a mão no peito.

Maelor encarou Helena como quem vê um deus antigo acordar.

— A voz do Alfa.

— Não — corrigiu Erynn, em reverência. — O lugar onde a voz do Alfa ficou.

Helena também cambaleou.

O som não era dela, e ainda assim rasgava por dentro como se sempre tivesse sido.

Kael estava ao lado antes que ela caísse.

Uma mão em suas costas, a outra erguida para o Conselho, aberta, prometendo paz e guerra na mesma linha.

A marca ardeu — e, ao toque do Alfa, acalmou.

Helena respirou.

O eco diminuiu, como maré.

Maelor passou a mão pelo rosto, como quem apaga uma visão.

— Confinamento. Hoje. Antes que o Sul sinta.

Ronan deu meio passo, dividido entre dever e repulsa.

Erynn fitou Kael.

— Alfa?

Ele encarou o Conselho como quem encara um inverno.

A mão desceu do ar para o punho da espada — não para sacá-la; para lembrá-la.

Depois, pousou dois dedos na cicatriz, traçou um arco até o ombro de Helena e desenhou no vazio um círculo ao redor dos dois.

Juramento.

Sigrid compreendeu primeiro.

— Queres amarrá-la ao teu silêncio.

Kael assentiu.

Maelor cuspiu no chão.

— Escravizá-la ao teu luto, queres dizer.

Helena ergueu os olhos, ferida.

— Eu não serei algema de ninguém.

Kael virou-se para ela, perto o bastante para que o calor dele desfizesse o mundo.

Levantou a mão, escreveu no ar, com a umidade da própria respiração: consentir.

Depois, um segundo traço: livre.

O coração de Helena tropeçou.

— E se eu disser não?

Ele encostou a ponta dos dedos no próprio peito, numa batida única: aqui.

Depois indicou a porta, o céu, as muralhas: ainda assim.

Erynn respirou, lenta.

— O juramento não é prisão, Maelor. É ponte guardada. Se ela quiser.

O Conselho ia responder quando um som cortou o ar do salão: três toques secos de chifre, vindos das muralhas.

Ronan empalideceu.

— Sinal do vale. Os batedores… não, não são os nossos.

Outro toque.

Mais grave.

Os lobos explodiram num uivo que não era lamento — era alarme.

Helena levou a mão ao ombro. A marca queimava como ferro.

E, por baixo do terceiro toque, subiu uma voz fina, metálica, feita de vento rasgado — a mesma que invadira a noite do pátio.

Helena.

Dessa vez, ela não caiu.

Deu um passo à frente, os olhos no portal, o sangue em brasas.

Kael acompanhou, meio passo atrás, a sombra do corpo dele sobre o dela como um manto.

— Quem são? — perguntou Sigrid, tensa.

Ronan já corria.

— Homens do eco.

Kael ergueu a mão, punho fechado, e o salão inteiro obedeceu ao gesto antigo.

Preparem-se.

A neve lá fora engrossou de repente, como cortina puxada.

E o Norte — mais uma vez — prendeu a respiração.

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