A primeira coisa que Helena ouviu não foi um som.
Foi o
calor — o estalo manso do braseiro, o suspiro das peles secando, o corpo lembrando que ainda era corpo.
Abriu os olhos com cautela. A pedra do teto brilhava em prata, devolvendo a luz da manhã.
A marca no ombro ardia em batidas lentas, sincronizadas com algo que não era só seu coração.
Tentou sentar-se. O quarto oscilou, como se o castelo respirasse.
Um jarro de água, um pano limpo, ervas amargas.
E, à distância, passos medidos — sem pressa, sem ruído.
Ele.
Kael apareceu no umbral como se surgisse de dentro da pedra.
Torso coberto por couro escuro, os cabelos ainda úmidos, a cicatriz riscando a garganta com um brilho pálido.
Os olhos dele a varreram por inteiro, não como um homem olha uma mulher, mas como um lobo reconhece um território que prometeu proteger.
Helena levou a mão ao manto que a cobria — o mesmo cheiro de pinho e fumaça da noite anterior.
A voz saiu fina:
— Onde estou?
Kael não respondeu.
Aproximou-se dois passos, pousou o jarro ao lado da cama e, com um gesto do pulso,
permita.
Helena ergueu o queixo, teimosa.
— Consigo sozinha.
Ele assentiu. Recuou.
Ela molhou o pano e o levou à testa. O frio atravessou a pele como lâmina limpa.
— Quem me trouxe?
Silêncio.
O olhar de Kael foi até a marca em seu ombro. Então ele tocou a própria cicatriz, depois o chão, depois o peito.
Triângulo de ar.
Eu—terra—tu.Antes que Helena decifrasse, a porta se abriu.
Erynn, a anciã, entrou com Ronan. As linhas no rosto dela pareciam esculpidas pela própria neve.
— O Conselho do Vento chegou — disse Erynn, sem preâmbulos. — Querem te ver antes do meio-dia.
Ronan permaneceu junto à parede, olhos duros.
— Vieram três. Maelor, Sigrid e Halv. Não são amigos.
Helena franziu o cenho.
— Conselho do Vento?
— Os que escutam o Norte quando os homens esquecem — explicou Erynn. — Acham que a tua marca é uma fenda. E fendas atraem dentes.
Ela quis rir, mas o corpo não deixou.
— Eu não pedi nada disso.
— Ninguém pede — disse a anciã, sem gentileza nem pena. — Mas és
chamada. E chamados se pagam.
Kael ergueu a mão. A palma para baixo, cortando o ar: basta.
Erynn fechou a boca.
Por um instante, o quarto ficou só de respirações.
Helena sustentou o olhar do Alfa.
— Vão me julgar?
Ele inclinou a cabeça:
sim.
— E você?
A resposta veio num gesto que era quase uma oração: mão ao coração, depois ao vazio entre eles, depois aos próprios lábios —
guardar.
Helena entendeu: ele ficaria. Mesmo que não pudesse falar.
O salão do Conselho era frio como lâmina lavada.
Três estandartes pendiam do teto — o do vento, o do gelo e o do lobo.
Maelor, alto e ossudo, tinha olhos como pregos.
Sigrid, cabelos brancos até a cintura, segurava um colar de dentes antigos.
Halv, o mais jovem, mantinha as mãos cruzadas nas costas — postura de quem quer parecer pedra.
Helena entrou envolta no manto do Alfa.
Ronan vinha um passo atrás; Erynn, dois à frente.
Kael já estava no centro, imóvel, cravado no chão como raiz.
— Esta é a mulher — disse Maelor, sem saudação. — A que sangra luz.
Sigrid a observou como se olhasse uma fogueira: com fascínio e cautela.
— A marca canta, mesmo calada.
Halv inclinou a cabeça.
— Dizem que o Sul a quer.
Helena respondeu antes de pensar:
— O Sul não me tem.
— Ainda — corrigiu Maelor.
Kael girou o pulso. Cala-te.
Helena mordeu a própria língua, furiosa.
Erynn quebrou o gelo com voz baixa:
— A marca respondeu ao rugido do Alfa. O Norte a reconheceu.
— O Norte reconhece muitos brinquedos antes de quebrá-los — rosnou Maelor.
Helena deu um passo à frente.
— Não sou brinquedo.
— És
ponte — retrucou Sigrid. — E pontes ruem quando o rio decide crescer.
A marca no ombro de Helena respondeu, acesa.
A sala pareceu ficar menor.
Maelor aproximou-se, dedo em riste.
— Mostra o selo.
Ronan adiantou o corpo, mas Kael já havia se movido.
Fora só um passo — e, ainda assim, o ar mudou.
Ele ergueu a mão na altura do peito, aberta, firme:
não.
Maelor riu, seco.
— O mudo dita a ordem?
A cicatriz de Kael brilhou como lâmina sob neve.
Ele não piscou.
Sigrid suspirou.
— O Sul sussurra de novo. Homens do eco rondam nossos limites. A fenda no ombro dela pode ser janela.
Erynn tocou o cajado no chão, três vezes.
— E também pode ser
vedação. Não saberemos até que a voz acorde.
Helena sentiu o corpo gelar.
— Que voz?
Erynn a fitou como quem olha um abismo que, cedo ou tarde, precisará cruzar.
— A que ficou presa quando o Alfa gritou. A que as montanhas guardaram. A que dorme no teu sangue.
Silêncio.
Mesmo o fogo pareceu respeitar.
Maelor rompeu:
— Proponho que a confinemos na Tenda do Vento, sob vigília. Se for fenda, fechamos. Se for vedação, rezamos.
Helena deu um passo.
— Não serei trancada.
— És perigosa.
— Então perguntem ao perigo o que ele quer.
O dedo de Maelor tocou o vazio a um palmo do ombro dela — tão perto que o frio queimou.
— O que queres, marca?
A pergunta caiu como pedra no lago.
A dor subiu como água fervendo.
Helena levou a mão ao ombro. O selo brilhou sob a pele, pulsando rápido demais.
As tochas vacilaram.
Os lobos lá fora uivaram, inquietos.
E, do fundo da garganta de Helena — que julgava vazia — subiu um som.
Não era palavra.
Não era grito.
Era
eco.
Vibrou no teto, nos estandartes, nos ossos.
O chão tremeu.
O gelo de uma janela estalou em veias.
Ronan levou a mão à espada por instinto, depois recuou, assustado com si mesmo.
Sigrid abriu os olhos, ofegante.
— Pelas velhas luas…
Halv cambaleou, a mão no peito.
Maelor encarou Helena como quem vê um deus antigo acordar.
— A voz do Alfa.
— Não — corrigiu Erynn, em reverência. — O
lugar onde a voz do Alfa ficou.
Helena também cambaleou.
O som não era dela, e ainda assim rasgava por dentro como se sempre tivesse sido.
Kael estava ao lado antes que ela caísse.
Uma mão em suas costas, a outra erguida para o Conselho, aberta, prometendo
paz e
guerra na mesma linha.
A marca ardeu — e, ao toque do Alfa, acalmou.
Helena respirou.
O eco diminuiu, como maré.
Maelor passou a mão pelo rosto, como quem apaga uma visão.
— Confinamento. Hoje. Antes que o Sul sinta.
Ronan deu meio passo, dividido entre dever e repulsa.
Erynn fitou Kael.
— Alfa?
Ele encarou o Conselho como quem encara um inverno.
A mão desceu do ar para o punho da espada — não para sacá-la; para lembrá-la.
Depois, pousou dois dedos na cicatriz, traçou um arco até o ombro de Helena e desenhou no vazio um círculo ao redor dos dois.
Juramento.
Sigrid compreendeu primeiro.
— Queres amarrá-la ao teu silêncio.
Kael assentiu.
Maelor cuspiu no chão.
— Escravizá-la ao teu luto, queres dizer.
Helena ergueu os olhos, ferida.
— Eu não serei algema de ninguém.
Kael virou-se para ela, perto o bastante para que o calor dele desfizesse o mundo.
Levantou a mão, escreveu no ar, com a umidade da própria respiração:
consentir.
Depois, um segundo traço:
livre.
O coração de Helena tropeçou.
— E se eu disser não?
Ele encostou a ponta dos dedos no próprio peito, numa batida única:
aqui.
Depois indicou a porta, o céu, as muralhas:
ainda assim.
Erynn respirou, lenta.
— O juramento não é prisão, Maelor. É ponte guardada. Se ela quiser.
O Conselho ia responder quando um som cortou o ar do salão: três toques secos de chifre, vindos das muralhas.
Ronan empalideceu.
— Sinal do vale. Os batedores… não, não são os nossos.
Outro toque.
Mais grave.
Os lobos explodiram num uivo que não era lamento — era
alarme.
Helena levou a mão ao ombro. A marca queimava como ferro.
E, por baixo do terceiro toque, subiu uma voz fina, metálica, feita de vento rasgado — a mesma que invadira a noite do pátio.
— Helena.
Dessa vez, ela não caiu.
Deu um passo à frente, os olhos no portal, o sangue em brasas.
Kael acompanhou, meio passo atrás, a sombra do corpo dele sobre o dela como um manto.
— Quem são? — perguntou Sigrid, tensa.
Ronan já corria.
— Homens do eco.
Kael ergueu a mão, punho fechado, e o salão inteiro obedeceu ao gesto antigo.
Preparem-se.
A neve lá fora engrossou de repente, como cortina puxada.
E o Norte — mais uma vez —
prendeu a respiração.