O castelo amanheceu em expectativa.
Lobos rondavam as muralhas, inquietos; guerreiros trocavam sinais mudos; as torres exalavam fumaça de pinho e ferro.
O Norte inteiro parecia respirar mais rápido, como se pressentisse algo prestes a nascer — ou a ruir.
Helena acordou com o som distante dos sinos do pátio.
O corpo ainda doía, e a marca pulsava leve, como cicatriz viva.
Por um instante, esqueceu onde estava.
Depois, o frio respondeu.
Um manto de peles a cobria, e sobre a mesa havia pão escuro, mel e um cálice de água morna.
Nada luxuoso — hospitalidade do Norte.
Encostou os dedos no ombro. A pele ardia.
A lembrança da noite anterior voltou: o eco, o Conselho, o Alfa diante dela como um muro de silêncio.
A porta rangeu.
Ronan entrou.
Dessa vez, sem pressa, sem arrogância. Apenas olhou.
— O Conselho decidiu — disse. — Partes ao meio-dia.
— Parto? Para onde?
— A Tenda do Vento.
Helena se ergueu devagar.
— Prisão.
— Chamam de “proteção”.
— E tu, como chamas?
Ronan hesitou. —
Destino.A palavra ficou entre os dois, pesada, como gelo prestes a rachar.
Helena passou por ele, descalça, pés tocando a pedra fria.
— O destino não me sequestrou. Homens, sim.
Ele a seguiu, mas não respondeu.
Lá fora, o vento cortava como vidro.
A Tenda do Vento ficava além das muralhas, no limite do vale.
Construída de couro negro e ossos de lobo, erguia-se solitária, batendo contra o ar como um coração exposto.
A cada rajada, os amuletos pendurados no topo tilintavam, produzindo um som agudo — a única melodia que o Norte tolerava.
Helena caminhava entre guardas.
A túnica branca contrastava com o chão escuro.
Os lobos seguiam atrás, silenciosos, farejando o rastro dela no vento.
O manto do Alfa pesava sobre os ombros como promessa e sentença.
Quando chegou à entrada da tenda, Erynn a esperava.
A anciã segurava o cajado adornado com fios de prata e dentes antigos.
— Aqui o vento fala — disse. — E o vento nunca mente.
Helena não respondeu.
O olhar foi além, para as montanhas distantes, onde a neve cintilava como um mar imóvel.
— E o que ele vai dizer sobre mim?
— O que o Norte precisa ouvir.
Erynn estendeu a mão.
— Posso?
Helena assentiu.
A anciã pousou a palma sobre o ombro marcado.
Um tremor atravessou as duas.
A marca brilhou, depois escureceu, voltando à cor de carne.
— Ele te acalma — murmurou Erynn. — Mesmo sem tocar.
Helena entendeu.
Kael.
O Alfa observava de longe, do alto da muralha.
Os cabelos ao vento, a cicatriz brilhando em prata sob o sol pálido.
Ronan subiu até ele.
— Ela não entende o que carrega.
Kael não respondeu.
O olhar seguia fixo na tenda.
— E o Conselho quer provas — continuou o Beta. — Se for mesmo o eco, vão querer usar. Se for fenda, vão querer apagar.
Kael fechou os olhos, a mão apertando a pedra gelada.
A cicatriz pulsou.
Um som breve escapou da garganta, mais vibração do que voz.
Ronan recuou, atônito.
— Alfa...
Mas Kael já havia parado.
O vento levou o som, e o silêncio voltou a reinar.
Dentro da tenda, Erynn preparava o ritual.
Traçou três círculos no chão com pó de cinza e sal.
Helena ficou no centro.
O vento soprava pelas frestas, fazendo as velas tremular.
— O que devo fazer? — perguntou Helena.
— Ouvir.
A anciã começou a entoar uma prece antiga, quase um sussurro.
As palavras não eram humanas — pareciam pedras rolando dentro da terra.
Helena fechou os olhos.
Primeiro, o som dos lobos.
Depois, o eco de vozes distantes.
Por fim, o silêncio — tão profundo que a fez querer gritar.
E então algo respondeu.
Um sopro quente contra o rosto, uma voz sem corpo.
Tu carregas o que ele perdeu.
E ele carrega o que tu buscas.
Helena abriu os olhos.
O ar dentro da tenda tremulava, distorcendo as chamas.
O símbolo no ombro ardia de novo.
— Que é isso? — ela sussurrou.
Erynn não respondeu.
O vento aumentou, derrubando uma das velas.
A sombra dançou nas paredes, e o som de um rugido ecoou — vindo de lugar nenhum e de todos ao mesmo tempo.
Do lado de fora, os lobos começaram a uivar.
E no alto da muralha, Kael caiu de joelhos, a cicatriz queimando como ferro.
Helena levou a mão ao peito.
O coração disparou.
O vento agora sussurrava um nome entre os cabelos dela:
Kael. Se gritar, o lobo morre com você.
Ela reconheceu a voz — a de Lyra.
O medo se misturou à saudade de algo que nunca vivera.
Erynn segurou o cajado com força.
— A ponte se abriu — murmurou. — Não há mais volta.
Helena cambaleou, tonta.
O ar cheirava a ferro e neve.
O mundo girava em branco.
— Feche! — gritou a anciã, mas o vento rugiu de volta.
As paredes da tenda vibravam como se quisessem fugir do chão.
A marca de Helena brilhou em vermelho vivo.
Kael se levantou, o olhar fixo no horizonte.
Ronan o chamou, mas ele já estava descendo as escadas, atravessando o pátio, os lobos abrindo caminho.
O vento soprava contra ele, mas o Alfa avançava.
Dentro da tenda, Helena caiu de joelhos, o corpo tomado pela luz.
O selo queimava, pulsando com a mesma força que a cicatriz no corpo do Alfa.
Erynn tentou alcançá-la, mas o ar a repeliu.
Quando Kael atravessou a entrada, o vento parou.
O silêncio caiu como neve.
Helena ergueu o rosto, ofegante.
Os olhos dela — antes castanhos — agora refletiam prata.
O Alfa a encarou.
E, pela primeira vez desde o rugido que calou o Norte, um som escapou da garganta dele — rouco, quase humano:
“Helena.”
A palavra ecoou dentro e fora da tenda, fazendo o mundo estremecer.
As tochas se inclinaram, o ar pareceu vibrar em reverência, e os lobos lá fora se deitaram como diante de um milagre.
Helena sentiu lágrimas arderem, sem saber se de medo, ou de algo que finalmente se encontrava.
O vento voltou a soprar, mais suave — agora, sussurrando algo novo.
Dois corações. Um silêncio. Um destino.
E quando Kael estendeu a mão, o ar ao redor pareceu obedecer.
Helena a segurou.
E o Norte, inteiro,
voltou a ouvir.