O nome dela era Isadora Valli.
Aos 32 anos, Isadora era o retrato da elegância sóbria e da força discreta. Morena de pele dourada, cabelos castanhos escuros sempre presos em um coque impecável, vestia ternos sob medida que a deixavam ainda mais imponente. A ponta dos saltos soava firme sobre o piso de madeira do escritório envidraçado, no 23º andar da torre empresarial que levava o sobrenome da família: Grupo Valli. Era uma empresa sólida, de raízes tradicionais no ramo de exportação de commodities, construída tijolo a tijolo por seu pai, Alessandro Valli, um visionário que enxergava oportunidades onde os outros só viam obstáculos. Depois da morte dele, a mãe, Clara, assumiu o comando, modernizando processos, implementando políticas mais humanizadas e diversificando os investimentos. Sob a b****a de Clara, o Grupo Valli se tornou referência em sustentabilidade e inovação. Agora, com a morte recente da mãe, tudo estava em suas mãos. Isadora sabia que a empresa estava bem. Os números estavam sob controle, as projeções seguiam positivas, os contratos mantinham-se sólidos. Mas o trabalho era seu refúgio, ou talvez sua fuga. Ela mal se lembrava da última vez que tinha dormido sem pesadelos ou acordado sem aquela sensação de vazio. Estava mergulhada em relatórios e planilhas quando a voz da secretária interrompeu: — Dra. Isadora... — a voz suave e atenta de Lívia soou, com um misto de respeito e preocupação. — Já passa das sete. A senhora precisa parar. Pelo menos um café. Isadora levantou o olhar, os olhos castanhos levemente avermelhados pelo cansaço. Ela respirou fundo, passando a mão pelo rosto, como se o toque pudesse espantar o peso da exaustão. — Tudo bem, Lívia. Eu já vou... — a frase morreu no ar quando o telefone sobre a mesa vibrou, e o visor mostrou o nome que fazia seu estômago gelar: Detetive Breno Medeiros. Ela atendeu, engolindo em seco. — Sim? A voz do investigador era direta, sem rodeios: — Dra. Isadora, creio que temos uma pista sobre sua irmã. Pode vir até o meu escritório? Isadora sentiu o sangue esquentar sob a pele. Fechou os olhos por um instante, tentando organizar a respiração. — Estou a caminho. Levantou-se, pegando o sobretudo de lã preta. Lívia já estava ao lado, segurando a bolsa e o tablet. — Eu dirijo. — disse a secretária, com firmeza, como quem já sabia que a chefe não estava em condições. No caminho, o silêncio era pesado. O carro deslizou pelas ruas iluminadas, os vidros escurecidos refletindo fragmentos de uma cidade que não parava. Lívia, no banco do motorista, quebrou o silêncio com um tom cuidadoso: — Ele voltou pra casa? Isadora virou o rosto para a janela, observando as luzes desfocadas. — Não. Continuamos brigados. — Doutora, perdoe a intromissão, mas... — Lívia hesitou, os dedos apertando o volante. — Ele é seu marido. Talvez... Talvez ele só não saiba como lidar com o seu luto. Às vezes, os homens têm essa mania de tentar consertar tudo com presença, com toque... Isadora respirou fundo, o maxilar tenso. — Ele quer que eu seja alegre, disponível, sexual, como se nada tivesse acontecido. Como se dois meses fossem tempo suficiente pra "voltar ao normal". Ela soltou um riso curto, amargo. — Ele não me merece. Lívia desviou o olhar por um instante, mas não resistiu a dizer: — Talvez você devesse reconsiderar. Ele parece... Ele parece amar você, doutora. Isadora permaneceu em silêncio. Lá fora, a cidade seguia seu curso, indiferente às dores humanas. O escritório do detetive Breno Medeiros era simples, funcional, sem ornamentos desnecessários. Havia uma mesa robusta de madeira escura, alguns arquivos empilhados de maneira organizada e um leve cheiro de café passado há pouco tempo. Ao lado da janela, uma luminária de luz amarelada lançava sombras sobre os papéis espalhados. Isadora entrou determinada, o salto dos sapatos ecoando pelo piso. Lívia permaneceu à porta, como uma sombra atenta. Breno levantou-se, ajeitando a gravata com um gesto automático. — Boa noite, doutora Valli. — Ele a cumprimentou com um aceno breve, já puxando uma cadeira para ela. — Obrigado por vir tão rápido. — O que você descobriu? — A voz de Isadora era baixa, mas carregava uma urgência inconfundível. Breno pegou uma pasta e a abriu com cuidado, como se segurasse algo frágil demais para o toque. — Encontramos uma mulher que, ao que tudo indica, pode ser sua irmã. Isadora se inclinou para frente, os olhos presos no detetive. — O nome dela é Úrsula Costa. Nasceu no mesmo cortiço em que sua mãe viveu na juventude, na Vila Mariana. — Ele virou algumas folhas. — Trinta e cinco anos, sem filhos, sem marido. Não tem emprego formal registrado, mas... — Ele pausou, os olhos subindo para Isadora. — Apesar da origem humilde, ela frequenta lugares caros, se veste muito bem. Segundo informações preliminares, o pai dela faleceu quando Úrsula tinha 18 anos. Desde então, ela parece ter seguido um caminho... peculiar. Isadora franziu o cenho. — Peculiar como? Breno entrelaçou os dedos sobre a mesa. — Não há muitos detalhes ainda. Ela parece ter amigos influentes, gente de alta sociedade, mas não há vínculos claros. Vive bem, mas não há fonte de renda declarada. É bonita, carismática. E os lugares que frequenta... — Ele puxou uma foto e deslizou até Isadora. — Restaurantes de luxo, eventos exclusivos. Ela sabe se mover nesses ambientes. Isadora pegou a foto com mãos tensas. Ali, impressa em papel fotográfico, estava Úrsula. Os olhos: negros, intensos pareciam brilhar mesmo na imagem estática. O cabelo preto caía em ondas largas sobre os ombros, e a boca, de contorno generoso, lembrava demais a de Clara. Havia algo no nariz, na linha do maxilar... Era como se visse a mãe projetada ali, mas também algo selvagem, uma aura que parecia desafiar as regras. Isadora não piscou, não respirou por um instante. — É ela. — Sua voz saiu quase em sussurro. Breno se recostou na cadeira, cruzando os braços. — Eu entendo sua ansiedade, doutora, mas preciso pedir paciência. — Ele falou com calma, o tom de quem já havia lidado com casos sensíveis. — Ainda temos que investigar mais. Saber com quem ela anda, como ela se sustenta, se há riscos. Entrar em contato agora poderia assustá-la, espantá-la, e perderíamos a chance de entender o contexto. Isadora forçou-se a largar a foto, os dedos ainda trêmulos. — Eu... — Ela respirou fundo. — Eu entendo. — Eu prometo que estamos avançando. Assim que tiver algo mais concreto, aviso. — Ele fechou a pasta. — Mas por favor, não tome nenhuma iniciativa sem me consultar. Estamos lidando com alguém... que pode ter mais segredos do que parece. Isadora assentiu, embora uma chama de impaciência ardesse em seu peito. Lívia tocou levemente o ombro dela, como um lembrete silencioso de que estavam juntas nisso. Enquanto saíam do escritório, Isadora olhou mais uma vez para a foto de Úrsula, gravando cada detalhe. A certeza era implacável: era ela. Sua irmã. Agora, ela só precisava esperar. Mas paciência nunca foi seu forte.