— Preciso urgente de você.
Dante franze o cenho, cada musculo em seu corpo ficando em estado de alerta. Ele não ouvia essa voz há semanas. Não desde que decidiu tirar uma licença pois já tinha mais de um ano que veio ao seu território, deixando tudo nas mãos de primeiro beta Galak.
— O que aconteceu? — Dante indaga, sua voz ganhando uma rigidez instintiva.
— Um caso. E não qualquer caso. É um onde só você pode assumir — Olga, a chefe da equipe de investigação em que Dante trabalha no mundo humano, diz, seu tom sério.
Dante se mantém neutro, mas por dentro se sente aliviado por arrumar uma desculpa para sair novamente do território.
— Sobre o que é? — Pergunta, já andando até o fundo da toca, onde o guarda roupa guarda mais do que roupas.
— Confidencial. Vou passar as informações pessoalmente. Quando pode voltar?
— Já estou a caminho — responde e desliga antes que sua chefe tenha chance de dizer mais alguma coisa.
O Alfa abre as portas do guarda roupa e do fundo, por trás de uma prateleira falsa, repousam seus itens: coldre reforçado, luvas táticas e o sobretudo escuro que usa para realizar seus trabalhos em campo.
Enquanto fecha os botões da camisa social, encara seu reflexo no espelho suspenso na parede: cabelos desalinhados, olhos negros encobertos por um cansaço antigo, sua feição endurecida por perdas que ainda sangram em sua memória, uma dor profunda que por mais que o tempo passe, nunca diminui.
Seu escape está no mundo humano.
Uma forma de se esconder e evitar o destino.
— Hora de voltar ao trabalho — murmura para si mesmo.
E com isso, cruza a porta da toca, tomando o caminho para voltar ao mundo onde ele finge ser apenas mais um simples humano.
~~
Nada naquele dia está certo.
Desde o momento em que acorda atrasada, suando frio, com aquela velha e sufocante sensação de estar presa — resultado de mais um pesadelo que insiste em voltar, sempre igual, sempre real demais.
O chuveiro, claro, decide parar de funcionar justo quando a água quente começa a aliviar seus ombros. O café sai quente demais e amarga sua boca já irritada. A folga, cancelada de última hora. E o carro velho, teimoso como sempre, só pega depois da terceira tentativa, tossindo e rangendo como se também estivesse de mau humor.
Tudo parece empurrar Celina para o limite.
Mas Celina apenas respira fundo, prende os cabelos em um coque frouxo no topo da cabeça e segue. Mestra na arte de fingir que está tudo bem. Que tem o controle. Que não está desmoronando por dentro. Escondendo seus verdadeiros sentimentos atrás de uma fachada amigável, um sorriso gentil.
Ao se aproximar de um cruzamento, algo salta no meio da pista.
Pequeno. Rápido. Desesperado.
Talvez um cachorro perdido, ou um guaxinim assustado. Celina não tem certeza.
O coração dela dispara dentro do peito.
— Droga! — Grita, girando o volante para a esquerda. — Não, não, não!
As rodas deslizam no asfalto molhado pela chuva da noite passada.
O carro derrapa, os pneus guincham alto. Ela tenta retomar o controle, mas a direção vibra sobre seus dedos. Dois homens aparecem na calçada, e ela tenta girar o volante ao contrário.
Mas é tarde demais.
Ela perde o controle.
O veículo sai da pista.
— Droga! — ela grita, tentando pisar no freio, mas é tarde. — Saiam da frente! — Ela grita, mas os homens não há tempo.
Ela fecha os olhos.
BAM!
Os vidros do carro vibram, o motor chia, e o cheiro de borracha queimada invade o veículo. O cinto aperta o corpo de Celina com violência, sua testa b**e em cheio no volante, amassando-o contra seu crânio duro. O capô se dobra.
Dante permanece imóvel, como se esculpido em pedra. Nenhum músculo se move, sequer faz questão de olhar para o acidente bem ao seu lado.
Mas Kaito, um jovem ômega, se esconde atrás dele como se ele fosse uma muralha indescritível entre ele o perigo. Suas mãos tremem levemente, os olhos arregalados, mas ele não ousa ultrapassar a sombra do líder. Ali, atrás dele, é onde se sente mais seguro, seus instintos ômegas falando mais alto.
Testemunhar um acidente de carro não fazia parte dos planos de Dante para aquela manhã.
O Alfa só queria aliviar a tensão com uma caminhada rápida pelas redondezas do mundo humano antes de seguir para a delegacia.
Se soubesse que teria que presenciar um acidente a essa hora do dia, teria seguido o concelho de Kaito e pego um de seus carros.
Dante suspira.
De dentro do veículo, uma cabeça despenteada e ofegante surge. Uma fêmea humana no banco do motorista, uma sombra pesada desce sobre seus olhos castanhos, arregalando-os.
Céus... — ela engole em seco, sentindo seus dedos trêmulos ainda sobre o volante.
A porta do carro range. Celina empurra com força e sai tropeçando nos próprios pés, o coração martelando no peito. Ela se apoia na porta.
— V-vocês estão bem? — pergunta, desesperada. — Eu vou leva-los para o hospital. –Só não sei como — ela completa mentalmente, engolindo seco e rezando para que não precisem de socorro.
Kaito avança com os olhos faiscando, e com um chute preciso, descarrega toda sua fúria no para-choque já destruído.
— Olha por onde anda com essa lata velha, sua idiota!
— Meu carro! — Celina grita, desesperada, a voz aguda cortando o ar enquanto ela se aproxima do capô, ou o que deveria ser o capô.
Ela analisa o estrago, sentindo as lágrimas queimarem seus olhos, mais um problema para sua enorme lista.
— Bem pouco — Kaito provoca. — Quem mandou nos atropelar, receba esse castigo da deusa por atentar contra nossas vidas valiosas.
— Atentei é o escambau! — Ela esbraveja, os olhos faiscando em direção ao mais jovem. — Se eu tivesse mesmo atropelado vocês, no mínimo, um dos dois teria que ter uma fratura exposta, um fêmur quebrado!
O vento sopra e entre as odores do asfalto molhado, do óleo queimado e do sangue recente... há algo mais.
Um perfume sutil, quase etéreo.
Doce.
Quente.
Familiar.O aroma invade as narinas de Dante como uma corrente invisível, e seu corpo inteiro enrijece.
É o cheiro da sua destinada.
No mesmo instante, seu maxilar trava. Os músculos do pescoço se retesam, tentando conter o lobo que começa a rugir dentro dele, afoito, ansioso. As mãos se fecham com tanta força que as unhas rasgam a pele.
Não pode ser... — o pensamento ecoa. A respiração de Dante se torna pesada, irregular. O peito sobe e desce como se ele tivesse acabado de correr por quilômetros — mas ele não se moveu um passo. Está ali, estático, como uma rocha à beira de desmoronar.
Um tremor discreto atravessa sua espinha.
Ele fecha os olhos.
E por um segundo, o Alfa vacila.
Ele não tem coragem de encarar a dona do cheiro mais delicioso que já sentiu.
— Sua mulher maluca... — Kaito começa.
— Já chega — Dante ordena. Sua voz é baixa, mas reverbera como trovão.