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Helena Thorne
O dia da minha orfandade era, ironicamente, ensolarado demais. A luz era uma afronta, irrompendo com uma crueldade gélida que não combinava com o cinza do luto. No Cemitério de Carleon, o calor fazia as pessoas suarem sob os pesados casacos de marca, mas meu corpo magro, aos dezesseis anos, sentia apenas um frio cortante, vindo de dentro. Eu carregava o peso de uma orfandade absoluta.
Ao chegar ao portão de ferro forjado, senti os olhares. Olhos famintos por trás de lentes escuras me perfuravam. Eu era Lena Thorne, e meu sobrenome era o único que importava ali, sinônimo de luto, e de milhões.
Entrei com uma dor física, como se o caminho fosse pavimentado com cacos de vidro. Quanto mais eu caminhava pela grama verde, mais o vazio no meu peito se tornava um abismo. Ali estavam os amigos que riam alto em nossa mansão, mas também os abutres, credores inconvenientes e oportunistas, todos esperando o momento de rasgar a carcaça.
Olhei para as duas lápides.
Apenas nomes.
Nenhum corpo.
O mar havia engolido meus pais.
Dias de buscas exaustivas trouxeram apenas a certeza de um acidente orquestrado, limpo, sem vestígios.
O murmúrio do padre, em um latim antigo e vazio de significado para mim, quebrou o silêncio. Olhei para as lápides, mas era para o céu que eu gritava por respostas que jamais viriam. Eu precisava de uma mão para me guiar, mas só havia o vazio.
A multidão se retirou lentamente após deixar murmurios que eles mal sabiam explicar, deixando rastros na terra úmida. Fiquei por horas, em silêncio absoluto, sob o sol forte e depois sob a chuva que veio como um chicote. Saí do cemitério com a certeza brutal, a dor não diminuiria.
Os dias se arrastaram, transformando a mansão em um circo fúnebre. A casa estava abarrotada de gente, mas vazia de qualquer afeto sincero. Eu tinha herdado o controle de um império, mas perdido o sentido da vida.
Dias depois, ele chegou. Meu padrinho, Victor Sterling.
Victor era o melhor amigo do meu pai, o homem que havia me segurado no batizado, o padrinho que prometeu zelar por mim. Ele veio pronto para assumir minha tutela e o controle interino dos negócios da família Thorne.
Diariamente, a cena na mansão se tornava mais repugnante. Mesas de café da manhã sujas de restos de jarras de conhaque. Mulheres desconhecidas indo e vindo, fingindo não me ver. A herança já estava sendo saqueada. Eu nunca dirigia uma palavra a Victor, mas a lembrança da voz da minha mãe era um aviso profético que ardia em minha mente.
— Lena, cuidado com Victor. O juramento de padrinho nem sempre é mais forte que a ambição. E o cheiro de milhões anula a moral de qualquer homem.
Eu não confiava nele.
Eu o vigiava.
Não me surpreendi quando os policiais invadiram a mansão. Não houve formalidade, apenas a violência de portas arrombadas. Eles foram direto para o antigo home office do meu pai. Victor tentou fugir pelos fundos, mas o agarraram.
Assisti a tudo do alto da escadaria. A cena era fria, brutal, Victor Sterling sendo algemado no chão de mármore branco.
— Permaneça em silêncio, Senhor Sterling. O que disser pode ser usado contra você. O mandado é por desvio de fundos e suspeita de envolvimento em homicídio.
Desci os degraus lentamente e peguei a notificação das mãos do policial mais alto. Li as palavras homicídio e Victor Sterling no mesmo parágrafo e encarei meu padrinho.
— Foi você? — perguntei, a voz embargada pela dor, mas carregada de ódio.
Victor, com a cabeça baixa, não respondeu de imediato. Um policial o forçou a levantar. Seus olhos azuis, antes gentis, me encararam.
— Foi você que os matou, Victor? Por dinheiro? — A dor rompeu o meu controle. Eu o empurrei no peito com toda a força que tinha, cambaleando logo em seguida. — Responda!
Victor Sterling soltou uma risada fraca e rouca. Aquele som zombeteiro, em meio ao caos de sua prisão, era a confirmação mais brutal.
— O seu pai sempre foi um tolo, Helena. Um tolo com muito dinheiro — ele conseguiu dizer, o sorriso frio se tornando um escárnio. — Você acha que eu faria isso por diversão? Olhe à sua volta, Herdeira. O mundo é um jogo. E eu apenas... joguei melhor.
O sorriso frouxo nasceu em seus lábios, como se o crime fosse uma piada de mau gosto, uma declaração de guerra.
— Você me dá nojo — eu sussurrei, as lágrimas voltando, mas agora eram lágrimas de raiva.
Foram as primeiras palavras que saíram dos meus lábios naqueles dias. Seus olhos azuis, antes gentis, me encararam. Um sorriso frouxo, frio e zombeteiro nasceu em seus lábios, como se o crime fosse uma piada de mau gosto, uma confirmação silenciosa. Levaram-no. Aquele foi o último dia que vi Victor Sterling. E soube, com horror, que meu luto tinha sido uma traição.
Depois daquela confrontação, permaneci em silêncio por meses, processando a violência e a traição. Até que o silêncio foi quebrado por um envelope de papel grosso e um nome que fazia a elite de Carleon tremer, Kaelen.
Eu estava em meu quarto quando a advogada da família, a Dra. Evelyn, me entregou o documento. Eu o rasguei antes mesmo de ler o cabeçalho.
— Nunca! Eu não vou me casar! — gritei, jogando os pedaços no chão. O caos parecia o único idioma que eu entendia agora.
A Dra. Evelyn, impassível, entregou-me uma segunda cópia. — Sua resistência é compreensível, Srta. Thorne. Mas não é negociável.
O envelope continha um acordo pré-nupcial. Meus pais haviam selado um pacto de sangue, entregando-me, a fortuna e a mim, ao filho mais velho dos Kaelen em troca de proteção. Os Kaelen não eram empresários; eles operavam nas sombras mais profundas, a única força que meu pai respeitava e temia.
— Ele é o futuro chefe da máfia! — Exigi, minha voz falhando. — Meus pais me venderam para a máfia!
A advogada me olhou com um pesar calculado. — Seus pais lhe deram uma chance de sobrevivência. Olhe para as opções, Helena. A assinatura de seu pai aqui é autêntica. O casamento deve ocorrer em uma semana, ou, de acordo com o testamento, o tribunal é obrigado a colocar você novamente sob a tutela de Victor Sterling, enquanto os bens são congelados para investigação.
A menção do nome Victor Sterling, o suposto assassino de meus pais, foi um golpe físico. Meu sangue gelou. A imagem de seu sorriso zombeteiro me forçou a engolir a raiva.
Eu voltei a ler o documento, as mãos tremendo. Nele estava a ordem fria, eu, uma garota de dezesseis anos, precisava ser protegida de forma absoluta. Não por ser uma menina, mas por ser a Herdeira da Thorne Corporation, um alvo ambulante.
Eu não tinha escolha. Ou me casava com um fantasma da máfia, ou voltava para a guarda legal do homem que matou meus pais para me roubar.
Naquela mesma semana, fui levada ao cartório como um pacote a ser despachado. Eu vestia a roupa mais simples de ficar em casa, o cabelo preso numa trança mal feita. Assinei os papéis ao lado de um homem alto, magro, de óculos de aro discreto. Ele não me olhou. Eu desviei o olhar do seu rosto.
Assinei um contrato de escravidão com um estranho e voltei para a mansão, agora casada. A aliança no meu dedo parecia uma algema de ouro, pesando uma tonelada. A mudança foi imediata, com a eficiência fria da máfia, as malas foram feitas, a casa esvaziada.
Mudaram-me de casa, de escola. Mudaram minha vida. Minha privacidade foi vigiada 24 horas por dia, há sempre homens de preto em todos os lugares. A governanta Sra. Maeve e o mordomo Arthur passaram a morar comigo. Quanto ao meu esposo, só o vi naquele dia. Ele nunca me visitou. Eu nunca perguntei por ele.
A verdade era brutal, eu não precisava de um esposo. Eu precisava do seu sobrenome. Kaelen é o nome que faz os abutres tremerem e se afastarem.
Mas, ao invés de usar o Thorne ou o Kaelen, prefiro que me chamem de Lena Aris para os desconhecidos. Para os mais chegados, apenas Lena. Eu estava protegida, mas a que custo? E até quando?







