Lívia não conseguiu voltar direto para casa.
Saiu da cafeteria caminhando sem rumo, como se o corpo precisasse se mover para acompanhar a confusão dentro da cabeça. O vento frio da tarde tocava seu rosto, mas não era suficiente para afastar o calor que subia pelo peito, resultado de tudo o que fora dito — e, principalmente, do que ficara subentendido.
Proteção.
A palavra parecia bonita quando dita por Daniel, mas carregava um peso difícil de ignorar. Proteção podia facilmente se transformar em controle. Em dependência. Em silêncio imposto.
Ela atravessou a rua distraída, quase não percebendo o semáforo abrir. Só se deu conta quando um carro buzinou e o motorista gritou algo que ela não ouviu. O coração disparou, e ela levou a mão ao ventre instintivamente.
— Calma… — murmurou. — Está tudo bem.
Mas não estava.
Chegou ao pequeno apartamento quando o céu já começava a escurecer. Assim que fechou a porta, encostou-se nela e deixou o corpo escorregar até o chão. As lágrimas vieram silenciosas, sem soluços, como se já não tivesse forças nem para chorar direito.
Nunca se sentira tão sozinha.
Pegou o celular e abriu a conversa com Daniel. Digitou algo, apagou. Digitou de novo, apagou outra vez. Qualquer resposta parecia errada. Qualquer decisão, grande demais.
Sentia medo.
Medo de aceitar e perder a si mesma.
Medo de recusar e colocar o filho em risco.
— O que eu faço? — sussurrou para o vazio do apartamento.
Não havia resposta.
Do outro lado da cidade, Daniel também encarava o próprio reflexo, mas no vidro escuro da janela de seu escritório. A noite avançava, e ele continuava ali, sem ligar as luzes, perdido em pensamentos que insistiam em escapar do controle.
Lívia tinha razão.
Ele sempre resolvera tudo como um contrato. Pessoas entravam e saíam de sua vida como cláusulas temporárias. Nada ficava tempo demais para criar raízes. E agora havia uma mulher que o obrigava a encarar algo que não podia ser assinado, comprado ou encerrado com uma caneta.
Um filho.
Daniel passou a mão pelo cabelo, sentindo uma tensão que não experimentava havia anos. A proposta que fizera parecia lógica em sua cabeça. Segurança, estabilidade, proteção. Tudo o que ele sabia oferecer.
Mas, pela expressão de Lívia, percebera que aquilo também soava como uma ameaça.
— Maldição… — murmurou.
O celular vibrou em sua mão.
Mãe.
Ele suspirou antes de atender.
— Ela aceitou? — perguntou Helena, sem rodeios.
— Não — respondeu Daniel. — E mesmo que aceitasse, não seria nos termos que você quer.
Houve um breve silêncio.
— Você está se envolvendo demais — disse ela. — Isso não é prudente.
— Prudente é assumir responsabilidades — rebateu ele.
— Responsabilidade não significa abrir espaço para chantagens emocionais — respondeu Helena.
— Lívia não está me chantageando.
— Ainda — corrigiu ela.
Daniel fechou os olhos.
— Não fale dela assim.
— Você a conhece há quanto tempo? — questionou Helena. — Algumas semanas?
— Tempo suficiente para saber que ela não é quem você pensa.
— E quem ela é? — perguntou a mãe, com ironia.
Daniel hesitou.
— Alguém que não se vende — respondeu.
O silêncio do outro lado da linha foi carregado.
— Isso pode custar caro — disse Helena, por fim.
— Eu sei — respondeu Daniel. — Mas já está custando.
Ele encerrou a ligação antes que ela pudesse responder.
Enquanto isso, Lívia tomou um banho demorado, deixando a água quente cair sobre os ombros tensos. Tentava organizar os pensamentos, mas tudo parecia se misturar: a voz fria de Helena, o olhar firme de Daniel, o medo do futuro, a vida crescendo dentro dela.
Saiu do banho, vestiu um pijama largo e se sentou na cama. Abriu uma gaveta antiga e tirou de dentro um envelope amarelado. Contas atrasadas. Avisos. Lembretes de uma realidade que ela não podia ignorar.
Amava aquele filho antes mesmo de conhecê-lo.
Mas amor não pagava aluguel. Não garantia médico. Não afastava ameaças veladas.
O celular vibrou novamente.
Daniel.
Ela respirou fundo antes de atender.
— Alô.
— Você está bem? — perguntou ele, e a preocupação na voz a pegou desprevenida.
— Estou — respondeu, mesmo sem ter certeza.
— Eu não quis pressionar você hoje — disse ele. — Sei que pareceu isso.
— Pareceu porque foi — respondeu ela, com sinceridade.
Houve um silêncio breve.
— Você tem razão — admitiu Daniel. — E por isso estou ligando. Não para exigir uma resposta.
— Então por quê?
— Para dizer que, qualquer que seja sua decisão, eu não vou desaparecer — disse ele. — Não vou fingir que isso não existe.
Lívia sentiu o peito apertar.
— Promessas são fáceis — disse ela.
— Eu sei — respondeu ele. — Por isso não estou prometendo. Estou me comprometendo.
Ela fechou os olhos.
— Eu preciso de tempo — disse.
— Eu vou respeitar — respondeu ele. — Mas preciso que saiba que não está sozinha.
As palavras ecoaram dentro dela por longos segundos.
— Boa noite, Daniel — disse por fim.
— Boa noite, Lívia.
A ligação terminou, mas algo permanecia.
Pela primeira vez desde que descobrira a gravidez, Lívia sentiu que talvez não estivesse lutando completamente sozinha.
Mesmo assim, o medo ainda estava ali.
Naquela noite, sonhou que caminhava por um corredor longo e escuro, carregando algo precioso nos braços. Portas se fechavam ao redor, vozes sussurravam julgamentos, e, no fim do corredor, uma luz distante a chamava.
Acordou assustada, com a mão sobre o ventre.
— Eu vou te proteger — sussurrou.
Mas a pergunta continuava:
Quem a protegeria?
Ao amanhecer, Lívia tomou uma decisão.
Pegou o celular e escreveu uma mensagem curta para Daniel.
Precisamos conversar. Aceito ouvir sua proposta. Mas será nos meus termos.
Do outro lado da cidade, Daniel leu a mensagem e sentiu algo inesperado crescer dentro de si.
Esperança.
Mas também sabia:
Essa escolha não diminuiria os conflitos.
Apenas os tornaria inevitáveis.