A noite depois do beijo no mirante foi tranquila, mas carregada de uma nova energia. Eu não disse nada no caminho de volta, e Brandon também não tentou conversar. Ele respeitava meu silêncio com uma delicadeza que quase me fazia chorar. Havia algo em nós dois que estava se reconstruindo, e, pela primeira vez desde que acordei no hospital, eu não senti medo de estar em pedaços.
Na manhã seguinte, ele apareceu na porta do quarto com um sorriso leve e as mãos nos bolsos. Eu senti que uma novidade estava por vir. Será que vou gostar? O passeio me fez bem e até demos um primeiro passo na direção um do outro.
— Tenho uma surpresa. Mas só se você quiser.
— Já começamos o dia assim?
— Prometo que é algo bom. E seguro.
— O que é?
— Meus pais. Eles querem te ver.
Minha barriga revirou. Era um passo grande, enorme, gigantesco. Conhecer os pais de alguém já é tenso em qualquer situação... mas conhecer os pais do homem com quem você é casada, e sem lembrar de absolutamente nada, parecia o auge do surreal. Me deixou extremamente nervosa e insegura.
— Eles sabem da minha situação? — Perguntei, com a voz mais acelerada que o normal.
— Sabem. E te amam mesmo assim.
— Mesmo sem eu lembrar deles? — Questionei agitada.
— Eles não te amam pela memória. Amam você pela pessoa que é. E pela que foi. Nada disso mudou.
Assenti, mais por impulso do que por certeza. Brandon preparou um café rápido enquanto eu me trocava. Escolhi um vestido simples e leve, azul-claro, que encontrei pendurado no armário. Não reconhecia a peça, mas ela me vestia como uma lembrança silenciosa.
A casa dos pais de Brandon ficava numa rua arborizada, num daqueles bairros antigos onde as janelas ficam abertas e o cheiro de comida caseira escapa para as calçadas. Assim que descemos do carro, uma mulher de cabelos grisalhos e olhos ternos surgiu na varanda. Ela tinha o rosto sereno e um sorriso que parecia conhecer cada pedaço de mim.
— Naira! — ela desceu os dois degraus do jardim com uma leveza impressionante — Ah, meu bem...
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ela me envolveu num abraço quente, acolhedor, como se estivesse me esperando há meses. Senti o perfume de lavanda nos cabelos dela e um aperto suave nas costas.
— A senhora é...?
— Me chame de Clara, querida. Ou de mãe, se um dia isso fizer sentido pra você. — ela afastou-se só o suficiente para me olhar nos olhos — Mas, por favor, não se preocupe com nada. Só sinta-se em casa.
Brandon me lançou um olhar encorajador e, logo atrás da Clara, apareceu um homem alto, de postura forte, mas com um olhar absurdamente doce.
— Filha! — ele disse, abrindo os braços — Olha, eu sei que você não se lembra de mim, mas eu sou o Joaquim. Também aceito “sogrão”, se quiser.
Sorri, sentindo algo inexplicavelmente bom crescer dentro de mim. Entramos na casa e tudo ali exalava afeto. As paredes tinham fotos, muitas de Brandon em várias fases da vida, e algumas de nós dois. Em uma delas, estávamos sentados no sofá daquela mesma sala, rindo de alguma piada interna, com os pés entrelaçados.
— Essa aqui foi no dia em que vocês quase queimaram a lasanha e ainda fingiram que foi intencional. — Clara apontou a imagem com um brilho nos olhos — Você ria até chorar.
— Eu?
— Sim, meu amor. Você tem um riso escandalosamente encantador.
Rimos todos juntos, mesmo que, por dentro, eu ainda me sentisse como uma visitante numa casa onde antes talvez tivesse visitado. É tão estranho ver fotos minhas por aqui e não lembrar de ter vivido tudo isso. Mas eles são tão amorosos, acolhedores e doces comigo.
— Querem almoçar conosco? — Joaquim perguntou, com a voz animada — Fiz meu famoso frango ao molho de ervas. Você adorava, filhota.
— Eu adorava?
— Sim. Inclusive dizia que era a única coisa que me fazia vencer o Brandon na cozinha.
— Ei! — Brandon fingiu indignação — Calúnia!
Fiquei ainda mais surpresa. Brandon é um governador, pensei que sua vida fosse tão agitada e tomada pelo trabalho que não teria tempo para nada. Mas acabei de descobrir que até cozinhar ele sabe.
O almoço foi cheio de conversas. Eles me contaram histórias engraçadas, de viagens, aniversários, pequenas brigas resolvidas com abraços e bolos de chocolate. Nunca pressionaram. Nunca olharam para mim com expectativa. Apenas me deixaram ser. Rir onde eu quisesse rir. Ficar em silêncio quando o vazio me tocava.
Depois do almoço, Clara me levou ao jardim nos fundos da casa. É lindo, colorido e vivo.
— Você plantou essas lavandas aqui comigo. Disse que eram símbolo de cura.
— Eu?
— Você sempre foi feita de sentidos, Naira. De significados. Você nunca fazia nada sem um motivo bonito por trás.
— Deve ser estranho pra vocês... me ver assim. Tão... diferente.
— Amor de mãe e pai não conhece estranheza. Conhece saudade. Mas também conhece paciência. Você está aqui. Isso basta.
Amor de mãe e pai? Isso me faz lembrar que sou órfã, me faz querer saber sobre essa parte da minha vida. Ainda preciso conversar com o Brandon sobre isso. Fiquei ali com ela por alguns minutos, sentindo o cheiro das lavandas, ouvindo os pássaros e deixando a tarde me envolver. Quando voltamos para a sala, Brandon já estava com tudo pronto para irmos.
Na porta, Clara me abraçou de novo.
— Você pode vir sempre. Mesmo que nunca lembre, a gente nunca vai deixar de te amar.
Joaquim assentiu, emocionado.
— E mesmo que você decida seguir outro caminho algum dia, saiba que esse lar aqui vai ser sempre seu também.
Dentro do carro, já de volta, respirei fundo.
— Eles são incríveis.
— São mesmo.
— Eu senti... algo bom lá. Como se meu corpo lembrasse o que minha mente não consegue.
— Isso é mais do que suficiente. — Brandon pegou minha mão, entrelaçando nossos dedos — Porque o que nos une não são só memórias. São escolhas.
Olhei para ele, e pela primeira vez, senti que talvez... só talvez... estar em branco não fosse um fim. Mas um recomeço. E, naquele instante, eu estava disposta a continuar escrevendo essa história. Mesmo que fosse uma nova nessa minha recente visão da vida.