Mundo ficciónIniciar sesiónE quando nossos olhos se encontraram… ele também parou.
Foi só um segundo. Mas o suficiente para tudo voltar com força.
O carro. À noite. As mãos. O calor. O momento que nem eu nem ele planejamos — e que ainda queimava na memória como se tivesse acontecido ontem.Ele retomou o controle rápido.
Endureceu o maxilar, endireitou o corpo, quase como se pudesse vestir um personagem profissional e esconder tudo que a gente não deveria lembrar.Eduardo apareceu ao lado dele, sorrindo.
— Essa é a Isadora, a nova babá da Sofia.
Eu respirei fundo, segurei toda e qualquer expressão no rosto, me levantei rapidamente do tapete e estendi a mão como se estivesse diante de um completo estranho.
— Isadora. Muito prazer.O homem demorou um segundo a mais para reagir, como se precisasse se recompor.
Então estendeu a mão dele também. — Rafael. Prazer.Quando nossas mãos se tocaram…
O choque veio.
O mesmo de aquela noite. Uma faísca quente, instantânea, que correu pelo meu braço e me atingiu no peito.Eu prendi o ar.
Ele também.E por um momento estúpido e perigoso, nenhum de nós soltou a mão do outro.
Até que Sofia decidiu, sem querer, destruir — ou completar — a cena.A menina puxou a manga da camisa do pai e disse com toda a inocência do mundo:
— Papai… ela podia ser minha mamãe.
Se existia ar naquela sala, eu não percebi mais.
Eduardo abriu a boca, tentando segurar o riso e a vergonha.
Rafael ficou completamente rígido. Eu quis desaparecer no carpete.— Sofia… — Eduardo chamou, quase rindo. — A gente não fala assim, meu amor.
Mas ela insistiu, como quem fala uma verdade simples:
— Mas é que eu gosto dela. E ela combina com você.Meu rosto pegou fogo, desviei o olhar para o chão.
Rafael passou a mão pelo rosto, sem saber o que fazer. Eduardo precisou virar de lado para não rir.Eu tentei sorrir, mesmo morrendo por dentro.
— Crianças são sinceras e inocentes… — murmurei, querendo fugir imediatamente.Rafael respirou fundo, ainda tenso.
— Desculpe por isso. Ela… fala tudo o que passa pela cabeça.Os olhos dele voltaram para mim.
E havia tanto ali que eu não soube decifrar: reconhecimento, confusão, desejo… e uma tentativa desesperada de fingir que nada estava acontecendo.Eduardo observava tudo.
E, pela primeira vez, notei algo diferente no olhar dele. Um incômodo. Uma faísca de disputa.Eu não estava preparada para nada disso.
Mas o destino — e Sofia — aparentemente estavam.Porque naquele instante eu soube:
nada naquela casa seria simples.E aquele reencontro… ainda estava longe de terminar.
Eu não consegui dormir naquela noite.
Fiquei deitada olhando para o teto, revivendo cada detalhe que eu havia tentado enterrar: o toque das mãos, o olhar dele, o corpo forte inclinado sobre mim naquela noite impulsiva, o momento quase cinematográfico no tapete da sala horas atrás.
Não era para ser assim.
Ele não era para ser ele. E eu não era para estar ali.Mas o destino tem um senso de humor estranho.
E Sofia — a pequeno cupido inconsciente — ajudava sem nem perceber.No dia seguinte, acordei com o coração acelerado, já imaginando que ele estaria na casa. E estava.
Claro que estava.Havia chegado cedo no trabalho, Sofia ainda dormia em seu quarto de princesa — assim que ela falava. Desci para a cozinha para preparar o café da menina quando ouvi vozes vindas da sala. A dele, principalmente. Grave, firme, autoritária, com aquele timbre que se impõe sem esforço.
Tentei passar despercebida, mas assim que apareci no vão da porta, Rafael ergueu os olhos. E a forma como ele me olhou…
Como se ainda sentisse meu corpo no dele.
Como se a lembrança da noite tivesse voltado para ele também. Como se nada — absolutamente nada — estivesse resolvido.— Bom dia — murmurei, tentando parecer natural.
— Bom dia — respondeu, com a voz baixa e uma atenção que queimou na minha pele.
Eduardo estava ali também, sentado no sofá, observando tudo com aquela postura tranquila demais para ser só casualidade. A presença dele pairava no ambiente como uma sombra clara: ele também estava interessado, e agora talvez tivesse percebido que eu e Rafael tínhamos… alguma coisa.
— A Sofia ainda está dormindo — avisei.
— Ela dormiu tarde — Rafael disse, desviando os olhos por um segundo. — Ficou empolgada contando que ganhou “a melhor babá do mundo”.
Eu senti algo estranho no peito.
Uma mistura de carinho… e perigo.— Ela é uma criança doce. Fácil de gostar.
— Já percebi — ele disse.
Algo na forma como ele falou fez Eduardo pigarrear.
Um aviso silencioso: estou aqui também.— Isadora — Eduardo chamou —, quando terminar o café da Sofia, pode vir aqui na sala? Quero revisar sua rotina dessa primeira semana… e ajustar algumas coisas.
O tom não era de chefe.
Era de homem marcando território.Rafael virou a cabeça para ele lentamente, quase num reflexo.
O olhar dos dois se cruzou por um segundo. Tenso. Quase eletrizado.— Eu também gostaria de conversar sobre isso — Rafael completou, cruzando os braços. — Afinal, é minha filha e eu estava fora esses dias.
Era como assistir dois leões tentando ocupar o mesmo espaço.
Eu respirei fundo, rezando para que Sofia acordasse logo e salvasse o dia.
Quando ela finalmente apareceu, descabelada e fofa com seu pijama rosa, correu direto para mim, não para o pai.
— Isa! Você veio!
Me abraçou forte.
Tão natural, tão espontânea, que eu senti os olhares atrás de mim.Rafael observava com uma intensidade que parecia partir de dois lugares ao mesmo tempo:
como pai agradecido… e como homem incomodado.— Bom dia, princesa — sorri, pegando-a no colo.
Ela me abraçou pelo pescoço, apertando, e eu senti o cheiro de shampoo infantil e inocência pura. O tipo de carinho que derrete qualquer coisa dentro da gente.
— Papai, hoje posso ficar com a Isa o dia todo?
A pergunta caiu como uma bomba.
Rafael limpou a garganta, tentando esconder o sorriso.
Eduardo, por outro lado, ergueu uma sobrancelha, analisando tudo.— Pode — Rafael respondeu. — Desde que a Isadora também queira.
Ele falou meu nome devagar.
Como se gostasse demais de pronunciar.Senti minhas bochechas queimarem.
— Claro que quero — respondi, tentando manter a voz firme.
Sofia comemorou, abraçando meu rosto como se eu fosse um presente de aniversário.
E por um instante, percebi o que aquilo significava:
eu já estava dentro daquela família de um jeito que não planejei. Nem pedi. Nem sabia lidar.O dia foi tranquilo… até Rafael decidir trabalhar no escritório de casa.
Porque a cada vez que eu passava pelo corredor, sentia o peso do olhar dele, mesmo que a porta estivesse entreaberta. Ele observava sem ser óbvio, sem ser indelicado, mas com uma atenção masculina, silenciosa… difícil de ignorar.
Eduardo, por sua vez, usava qualquer desculpa para surgir por perto:
trazer um copo d’água, ajustar a temperatura do ar, “conferir se estava tudo bem”.Era quase engraçado.
Quase.No final da tarde, eu levei Sofia para o jardim. Ela se sentou no balanço, rindo, com o vestido rodando no vento. E em certo momento, quando eu a empurrei devagar, ela gritou:
— Papai! Olha! A Isa me deixa voar alto!
Rafael apareceu na varanda, apoiando-se no corrimão.
Eduardo logo ao lado dele.E por um segundo, tive plena consciência:
Eu era o centro de um triângulo que nunca pedi para formar.
E o pior?
Não era só eles que estavam mexidos.Eu também estava.
Quando o dia terminou, eu fui até a sala avisar que já estava indo embora. Eduardo se adiantou:
— Eu te acompanho até o carro.
Rafael permaneceu em silêncio.
Mas seus olhos diziam outra coisa.Algo como:
Eu lembro da nossa noite.
E você também lembra. E isso ainda não acabou.Eu engoli em seco.
Sorri para os dois.— Por favor, não se incomode. Boa noite.
E saí com a sensação de que aquele reencontro não era um fim.Era só o começo.







