####AS ÓRFÃS

O silêncio depois da despedida foi pior do que qualquer grito. Eu desci os degraus devagar, cada passo mais pesado que o anterior, como se meus pés estivessem sendo puxados por correntes invisíveis. Quando alcancei o portão, o ranger do ferro ecoou como uma sentença. O mundo lá fora continuava o mesmo: os postes iluminavam a rua deserta, o vento soprava frio, mas dentro de mim nada mais era igual.

Dei alguns passos na calçada e parei. Virei o rosto uma última vez para o prédio. As janelas estavam escuras, exceto por uma, no segundo andar. A cortina se movia levemente, e eu soube — mesmo sem conseguir ver direito — que era Charlotte. Ela estava ali, de pé, espiando pela janela como quem queria guardar em sua memória a imagem de cada segundo antes que eu partisse.

Levantei a mão num gesto quase instintivo, como se pudesse acenar para ela, mas a cortina se fechou devagar, como se a própria menina tivesse decidido erguer uma muralha entre nós. Aquilo me doeu mais do que qualquer lágrima.

Emily, eu sabia, já dormia nos braços de Grace. Ainda chorosa, soluçando até no sono, mas ao menos havia alguém que a embalava. Já Charlotte… ela escolhera o silêncio como armadura. E o silêncio, aprendi ao longo da vida, é o grito mais alto que uma criança pode dar.

Segui caminhando até o ponto onde o carro da polícia ainda esperava para me levar de volta. O policial abriu a porta, mas antes de entrar eu olhei para o céu. As nuvens encobriam as estrelas, mas murmurei uma oração:

Margaret, Edmund, vocês precisam olhar por elas. Eu não consegui protegê-las como devia. Que ao menos vocês, onde estiverem, possam ser o anjo delas agora.

Os dias seguintes foram como uma ferida aberta que nunca cicatrizava. Eu voltava ao orfanato sempre que conseguia, levando roupas lavadas, bolos simples, livros de histórias que Margaret adorava ler para elas. Cada visita era recebida de uma forma diferente.

Emily corria para mim, agarrava-se à minha saia, e chorava até soluçar. Depois, quando Grace a tomava nos braços, aos poucos se acalmava. Era como se já reconhecesse naquela mulher um porto seguro. Aos poucos, percebi que a pequena estava escolhendo a quem confiar seu coração despedaçado.

Charlotte, porém, me recebia em silêncio. Não havia lágrimas, nem abraços. Apenas um aceno tímido de cabeça e aquele olhar fixo, maduro demais para uma criança de sete anos. Era como se ela dissesse: eu sei que a senhora não pôde evitar, mas eu não consigo perdoar o mundo por ter me tirado tudo.

Certa vez, levei para ela um álbum de fotografias que ainda guardava em casa, com imagens antigas dos pais no aniversário de casamento. Coloquei o álbum sobre a cama dela, sorrindo com ternura.

— Achei que você gostaria de ver.

Ela abriu o álbum devagar, passou os dedos sobre o rosto da mãe, depois sobre o do pai. Mas não chorou. Apenas fechou o álbum e o guardou na mochila com o urso de pelúcia.

— Obrigada. — disse, seca.

Foi nesse momento que percebi: Charlotte não estava apenas sofrendo, ela estava construindo dentro de si uma fortaleza. Talvez fosse a única forma que encontrara de sobreviver.

O orfanato, com seu cheiro constante de sopa e desinfetante, não tinha nada de lar. As camas eram enfileiradas, o piso de madeira rangia, e as paredes úmidas contavam histórias de abandono em cada mancha. As crianças mais velhas olhavam para as novas com curiosidade ou desdém. Algumas tentavam consolar, outras apenas aprendiam cedo demais que naquele lugar ninguém podia ser fraco.

Na primeira noite em que dormi fora do orfanato, chorei tanto que achei que não teria forças para levantar no dia seguinte. Senti como se tivesse abandonado minhas próprias filhas. Eu sabia que não eram minhas, mas no coração, eram. Edmund e Margaret haviam me confiado a rotina delas, os risos, as travessuras, e agora eu as entregava a um destino que não escolheram.

Fechei os olhos e só via Charlotte me olhando da janela, dura como pedra. Só ouvia Emily gritando “mamãe” nos braços de Grace.

Foi então que compreendi: eu carregaria essa cena comigo para o resto da vida.

Os dias se tornaram semanas. Grace iniciou o processo para adotar Emily, e embora houvesse burocracias e papéis a assinar, eu sabia que aquilo era inevitável. Emily já a chamava de “tia” com uma doçura que partia o coração e, aos poucos, começava a sorrir de novo.

Charlotte, no entanto, não tinha ninguém. Ficava à margem, observando tudo com aquele olhar que me lembrava o de Edmund quando desconfiava de alguém nos negócios. Era uma menina, mas tinha a alma de um adulto ferido. E eu sabia que o futuro dela seria mais difícil do que o de Emily.

Sempre que me despedia, levava comigo a mesma oração:

Que Deus tenha piedade dessas duas meninas.

Porque eu sabia que o mundo não teria.

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