O relógio no criado-mudo marcava pouco mais de sete da noite quando Rose finalmente se deu por vencida diante do espelho.Ela ajustou a barra da blusa pela terceira vez, como se o tecido fosse culpado pelo desconforto que sentia. A cada olhar, parecia ver não apenas o reflexo de uma mulher em roupas elegantes, mas também as cicatrizes invisíveis que carregava.O quarto estava em silêncio absoluto, mas dentro dela havia um tumulto ensurdecedor. Vozes do passado, lembranças da juventude, frases que ecoavam como tiros: “Prometo te proteger, Rose.” Era a voz de Will, ainda viva em sua memória.Fechou os olhos, respirando fundo. — Isso acabou. — disse a si mesma, mas as palavras soaram frágeis, como vidro prestes a rachar.Na cama, a pistola repousava sobre o coldre, lembrando-a de quem era e do que fazia. Rose pegou a arma, prendeu-a no cós da calça e escondeu sob o blazer. O gesto devolveu-lhe parte da firmeza. Ainda que a noite tivesse sabor de encontro, ela se obrigava a encarar como m

O jantar terminou envolto naquele silêncio carregado — não desconfortável, mas vibrante, como se cada palavra não dita ecoasse mais alto que as trocadas. Pedro pagou a conta com a naturalidade de quem dominava aquele tipo de ambiente, mas os olhos permaneciam fixos em Rose, como se a qualquer instante pudesse retomar o quase-beijo interrompido.Ela, por sua vez, manteve a postura impecável, mas por dentro o coração ainda pulsava no ritmo do instante em que o mundo quase desapareceu entre eles. Cada vez que respirava, lembrava-se da proximidade dele, do calor no rosto, do risco de ter cedido.— Vamos? — Pedro perguntou, oferecendo o braço em um gesto instintivo.Rose apenas fez um gesto afirmativo, ignorando a cortesia e avançando até a porta de saída. Seus olhos treinados já percorriam cada canto do salão, cada rosto suspeito. Ao atravessarem o hall envidraçado, a noite fria da cidade os recebeu como um soco de realidade.O movimento na rua era discreto. Carros passando, alguns pedest

O carro mal tinha parado diante da mansão quando Rose já estava do lado de fora, retomando o controle com passos firmes, como se nada tivesse acontecido na rua minutos antes. O blazer alinhado de qualquer jeito escondia o arranhão no braço, mas Pedro não esquecia a mancha de sangue que tinha visto.Ele saiu logo atrás, mas, diferente dela, não fazia questão de esconder o que sentia. O rosto ainda carregava a mistura de susto, raiva e um respeito que o corroía por dentro.Assim que entraram no hall, Rose tentou subir direto para o quarto, mas a voz dele a cortou:— Nem pense em me despistar.Ela parou no pé da escada, sem se virar. — Já disse que estou bem.— E eu já disse que não vou acreditar. — Pedro se aproximou, os passos ecoando no mármore. — Você pode enganar o motorista, os seguranças, até o mundo inteiro. Mas não a mim.Rose fechou os olhos por um instante. Precisava respirar fundo para não responder à altura. — Pedro…Ele não esperou. Tomou-lhe o braço com cuidado, mas firmez

A madrugada caiu pesada sobre a mansão. Do lado de fora, o jardim dormia em silêncio, iluminado apenas por postes baixos que lançavam círculos amarelados na grama. Do lado de dentro, cada corredor parecia guardar um segredo, cada porta fechada escondia mundos particulares.No quarto de Rose, o silêncio não era paz. Era tortura.Ela se remexia nos lençóis, o corpo inquieto, a mente mergulhada em lembranças que insistiam em voltar. No sonho, estava de novo naquela noite — o assalto, os gritos, o sangue escorrendo pelas mãos. A figura de Will se formava diante dela, os olhos vivos, o sorriso fácil que sempre conseguia arrancar dela uma gargalhada.O cenário ao redor também parecia real demais: o cheiro de gasolina misturado ao da rua molhada, o som dos carros ao longe, e o toque quente da mão dele entrelaçada na sua. — Rose… minha Rose… — ele murmurava, como tantas vezes dissera em vida, com a voz grave que parecia feita para acalmar suas tormentas. Ela tentou responder, mas a gargan

O relógio marcava quase o fim da tarde quando Rose entrou na academia da mansão. O ambiente cheirava a couro e suor, as paredes refletindo o som abafado dos passos sobre o piso emborrachado. Para ela, aquele espaço sempre fora um refúgio: ali não havia lembranças nem promessas quebradas, apenas disciplina.Mas Pedro já estava lá.Vestia calça de treino e camiseta escura colada ao corpo, os cabelos úmidos denunciando o banho rápido depois do expediente. Segurava as bandagens nas mãos, mas não fazia questão de esconder que só esperava por ela.— Pensei que fosse fugir hoje. — disse, arqueando uma sobrancelha com o habitual ar de provocação.Rose respirou fundo, ignorando o sorriso dele. — Eu não fujo. Só cheguei atrasada.— Ótimo. — Pedro estendeu as mãos com uma ousadia quase infantil. — Então me mostra do que é capaz.Rose ergueu uma sobrancelha, ajeitando as luvas de treino. — Já mostrei o bastante.— Não para mim. — Ele sorriu, e havia fogo no olhar. — Ainda não.Rose não respondeu.