Primeira Parte: V

22 de julho, quarta-feira,

Três semanas antes do lançamento do OneConnect.

Ele não costumava julgar pessoas pela aparência e não acreditava no poder de primeiras impressões, mas, ao cumprimentar Sr.ª Castello, pensou que jamais havia tocado mãos tão frias.

Estefen pesquisara sobre a mulher antes de recebê-la em seu escritório. Era uma das principais responsáveis pela agência de publicidade mais respeitada do país. A dirigente da OneBionics já vinha investindo, há alguns meses, na elaboração do plano de divulgação do OneConnect para quando o serviço fosse finalmente lançado, e esse era o motivo por que Viveana Castello conduziria entrevistas em cada setor da empresa.

Era uma mulher baixa, mas se equilibrava em saltos agulhas de dez centímetros. Costumava usar terno e saia social. Para quem já havia ultrapassado a marca dos cinquenta anos, poderia se passar por alguém de quarenta. Seus cabelos brancos e curtos caíam em franja sobre a testa cirurgicamente esticada, emoldurando as sobrancelhas curvilíneas e demarcadas. Seus olhos eram de um anil profundo.

— É um prazer finalmente conhecê-la em pessoa — sorriu Estefen.

Ela sorriu de volta, mas algo naquele gesto não parecia certo.

— Posso dizer o mesmo — correspondeu, ajeitando a haste da objetiva atrás da orelha. Sua voz soava doce e baixa.

Estefen adentrou ainda mais o escritório e apontou para o minibar que havia no canto mais distante.

— Eu lhe ofereceria um drink ou um café, mas não bebo nada disso — falou. — Então, aceitaria um achocolatado? — Se Castello achou a oferta incomum, não transpareceu. Apenas fez que não e se sentou na cadeira diante da escrivaninha. Estefen ocupou seu próprio lugar, desabotoando o paletó e cruzando as pernas. Apontou para a tigela de rolls de canela sobre a mesa, que às vezes ficava guardada no armário, mas que hoje havia sido colocada à disposição. — Servida?

— Há amendoim neles? — averiguou, cautelosa. Estefen fez que não. Castello pegou um e comeu com duas mordidas.

— Li muito sobre a senhora antes de conhecê-la.

Ela levantou uma sobrancelha.

— Eu diria “espero que apenas coisas boas”, mas sei bem o que os tabloides costumam falar de mim.

Estefen fez um gesto com a mão, sem jeito.

— Tenho certeza de que eles exageram.

A mulher ajeitou a objetiva, e Estefen percebeu que aquilo era um cacoete. Penetrou os olhos azuis nele, como se analisasse algo num microscópio.

— Como?

Estranhou.

— Como assim?

— Como tem certeza de que exageram?

Hesitou. Na verdade, havia dito aquilo apenas por educação. Pigarreou e se ajeitou na cadeira.

— Bem, não é isso que tabloides fazem?

Ela sorriu outra vez, mas não mostrou os dentes.

— Sim. E você tem algo contra isso? — Não soou como uma acusação, mas fez um alarme soar na cabeça de Estefen. A entrevista já havia começado.

— As pessoas costumam não gostar de abordagens sensacionalistas.

— Estou mais interessada no que o senhor acha, Sr. Carvenagh, não no que pensam “as pessoas”.

Castello tinha o cuidado de não parecer rude, mas era justamente esse tipo de atitude que mais incomodava Estefen. Havia julgamento velado em suas perguntas, algo que o fazia se sentir no consultório de um psicanalista — ou, quem sabe, num tribunal de justiça.

— Pode me chamar pelo primeiro nome — defletiu.

— Muito bem. Estefen, certo? — começou, afastando um pouco a franja do rosto. — Meu trabalho como publicitária e, acima de tudo, CEO de uma companhia de publicidade requer que, por vezes, eu lance mão de certos artifícios que podem ser considerados “exagero” pelo senso comum. Fiquei curiosa a respeito da sua opinião quanto a esse assunto.

— Você está aqui para criar a estratégia de divulgação do nosso próximo serviço, não é? — perguntou. Já sabia que sim; estava apenas ganhando tempo. Pelas suas pesquisas, sabia que Castello não era uma pessoa agradável, mas jamais imaginara que se sentiria perturbado com sua presença em questão de minutos.

— Exatamente, entre outras atividades.

— Outras atividades? — Isso o pegou desprevenido. — Quais, por exemplo?

Ela levantou o queixo.

— Deixe que eu faça as perguntas, está bem?

Um silêncio pairou sobre os dois. A essa altura, Estefen já se convencia de que os tabloides não haviam exagerado nem um pouco.

— Como quiser. — Tentou soar confiante, mas se sentia como um estudante na sala do diretor da escola.

Castello movimentou a mão no ar, enviando comando para sua objetiva. Estaria gravando a conversa? Filmando Estefen? Ou apenas checando a lista de perguntas que preparara para aquela entrevista?

— Importa-se de responder à pergunta que fiz?

Estefen levou um instante.

— Acredito que todos temos direito de usar qualquer abordagem no nosso trabalho, contanto que não ajamos de maneira desonesta.

— Alguma vez você já agiu de maneira desonesta no seu trabalho?

Sem querer, Estefen encolheu os ombros.

— Não que eu me recorde.

— Então, está dizendo que você pode ter sido desonesto em algum momento, mas não se lembrar?

Ele cerrou a mandíbula. Sentia que, de alguma forma, ela tentava fazê-lo se comprometer. Será que a dirigente da OneBionics sabia que as entrevistas seriam conduzidas daquela maneira hostil?

Preferiu ser direto.

— O que estou dizendo é que não me recordo de nenhuma vez que eu tenha agido de maneira desonesta no meu trabalho — reiterou, com a voz firme. — O que, por outro lado, eu não disse, mas poderia ter dito, é que a mente humana não é um sistema perfeito, principalmente no que diz respeito a recordações. Nesse caso, desonestidade seria lhe dizer que tenho certeza de algo sobre o que, analisando friamente, posso estar enganado.

O sorriso dela retornou.

— Podemos concluir, então, que você é falho?

Assentiu.

— Do ponto de vista bioquímico e cognitivo, sim. Tanto quanto qualquer outra pessoa — respondeu. — O que inclui a senhora.

Ela suspirou, sem esboçar nenhuma reação relacionável. Movimentou mais uma vez o dedo no ar.

— Vamos para a próxima pergunta, Estefen — iniciou. — Você é chefe do departamento de gestão criativa, não é?

— Isso.

— Nesse caso, qual é sua função na OneBionics, em termos simples?

— Assim como todo o resto da equipe, tenho a missão de realizar pesquisas acerca de fatos, elementos e padrões históricos, sociais e culturais. A partir disso, e utilizando técnicas narrativas, desenvolvo enredo para nossos sintéticos. Como chefe, também supervisiono o resultado do trabalho dos meus colegas.

— Colegas?

— Gosto de conceder à equipe a importância que lhe é devida.

— Em outras palavras, seu posto de liderança não o coloca numa posição diferente da que você teria caso fosse apenas um criador?

Estefen engoliu em seco.

— Do ponto de vista de um artista, não.

Ela franziu as sobrancelhas muito levemente.

— E dos demais pontos de vista?

— Caso esteja se referindo à hierarquia da empresa, não tenho dúvida de que estou incumbido de mais responsabilidades do que meus colegas. A menos que os “demais pontos de vistas” aos quais a senhora se refere sejam outros específicos. Nesse caso, peço que desenvolva melhor suas perguntas antes de fazê-las.

Pronto, isso havia acabado de virar uma disputa retórica.

Mais uma vez, nenhuma reação.

— Devo enxergar esse seu comentário como uma crítica direta ao meu trabalho?

— Devo enxergar todas as perguntas que a senhora fez desde que pisou no meu escritório como críticas diretas ao meu? — Estefen sabia que estava pegando pesado, mas já nem se importava.

Ela ajeitou o terno com delicadeza.

— Sua insistência em ser aquele que faz as perguntas me faz acreditar que tem dificuldade em seguir prescrições quando elas não são convenientes para você.

Estefen esperou alguns segundos, observando-a com uma expressão neutra. Em seguida, teatralmente, rebateu:

— Ah, desculpa. Havia uma pergunta nisso que você acabou de dizer?

Ela sorriu outra vez e digitou alguma coisa na objetiva.

— Próxima pergunta, Estefen — prosseguiu. — Acredita que sua equipe tem, por si só, competência para realizar as pesquisas que você acabou de mencionar?

— De forma alguma. A OneBionics deixa à nossa disposição uma equipe de apoio formada por historiadores, psicólogos e cientistas sociais.

— E esses profissionais revisam o trabalho final dos criadores?

— Em casos mais complexos, sim.

— E quais seriam esses casos mais complexos?

Deu de ombros outra vez, mas agora com intenção.

— A senhora deveria perguntar à equipe de apoio, não a mim.

— Nos casos não considerados complexos, quem faz a revisão final é você, certo?

— Exato.

— Qual é a qualidade das suas revisões, considerando que você não é historiador, psicólogo nem cientista social?

Ela inclinou um pouco a cabeça para o lado, de modo que, mais tarde, Estefen descreveria como “um réptil se preparando para atacar uma larva”.

— A qualidade própria de alguém que estudou a vida inteira para ocupar a posição de quem faz tais revisões.

— Ah, mas como você mesmo mencionou… do ponto de vista bioquímico, você é falho como qualquer pessoa.

Colocava ênfase na palavra errada.

— Mais uma vez, não há pergunta no que a senhora disse.

— Muito bem, então, deixe-me reformular. Considerando o fato de que você é falho, o que faz com que acredite ter gabarito para tomar decisões finais em questões que dizem respeito a outras áreas profissionais senão a sua?

Essa realmente fez com que Estefen se desestabilizasse. Olhou para o próprio colo por um instante, pensativo.

— Você deve conhecer a dirigente Octavia Valvete. Ela me colocou neste cargo por um motivo. Por que não vai perguntar a ela sobre meu “gabarito”?

O sorriso dela dobrou de tamanho.

— É uma ótima sugestão. — Anotou mais alguma coisa. — Por fim, Estefen, devo dividir com você uma preocupação que me aflige. Também fiz minhas próprias pesquisas e constatei que pelo menos oitenta porcento dos sintéticos inseridos no serviço têm no enredo alguma característica própria do criador que os projetou. Uma crença pessoal, alguma espiritualidade, uma posição política. O quão profissional você acredita que isso é?

Estefen não conteve uma risada.

— É como fazer essa mesma pergunta a um cineasta.

— O que quer dizer?

— Como já mencionei, Sr.ª Castello, todo criador é um artista. E não é novidade para ninguém que um artista busca inspiração em seu cotidiano para desenvolver sua arte.

— A ponto, inclusive, de criar milhares de alter egos e inseri-los num serviço de investimento milionário? Um serviço que deveria abarcar os interesses dos usuários, não dos funcionários da empresa?

— Alter egos? Eu não usaria tais termos. — Arrastou um pouco a cadeira para trás.

— Que termo usaria?

Respirou fundo.

— “Personagens”. É exatamente o que são. Personagens.

— Pelas minhas análises, eles me parecem bem mais do que isso.

Estefen perdeu de vez a paciência. Curvou-se um pouco para a frente.

— E o que faz com que você acredite ter gabarito para “fazer análises” sobre questões que dizem respeito a outras áreas profissionais senão a sua? — Fez uma breve pausa. — Ah, sim, não sou eu quem faz as perguntas! Nesse caso, então, deixe-me sugerir que você volte trinta anos no tempo e conclua uma graduação na minha área, para que assim possa formular perguntas que realmente tenham algum embasamento. — Voltou as costas para a cadeira. — Se essa era sua preocupação, e se não tiver mais nenhuma dúvida, acho que já tomou o suficiente do meu tempo.

Ela manteve o queixo erguido por mais alguns segundos, em silêncio, e então assentiu. Ajeitou a haste da objetiva uma última vez e se levantou.

— Essa conversa foi muito… — ponderou — esclarecedora, Sr. Carvenagh.

Abaixou os olhos para a tigela de rolls de canela outra vez, pegou mais um, deu as costas e caminhou para a porta, deixando o escritório.

Assim que se viu sozinho, Estefen soltou o ar. Teve vontade de xingá-la pelas costas, mas se segurou. Castello não era a primeira a aparecer em sua vida lhe dizendo como fazer seu trabalho, certamente não seria a última. Ele havia se preparado psicologicamente nos últimos dias, memorizando discursos inteiros que não chegaram a ser verbalizados.

Que seja, pensou. Não fazia ideia do que Octavia tinha na cabeça ao contratar aquela mulher para preparar as estratégias de divulgação do OneConnect.

Ligou seu computador e voltou a escrever o perfil psicológico de seu próximo sintético. Trabalhou por uma hora inteira sem conseguir se concentrar totalmente, e, quando finalmente esquecia o gosto amargo que aquela entrevista deixara na boca, alguém bateu na porta. Fédra, a assistente, surgiu na entrada do escritório:

— A dirigente pediu para ter uma palavrinha com você.

Ótimo! Ele já até podia imaginar do que se tratava.

Agradeceu à assistente, colocou-se de pé e saiu do escritório.

Passou pelos demais estandes, observando cada um de seus colegas de equipe. A maioria escrevia. Alguns conversavam com programadores, outros testavam seus respectivos sintéticos.

Subiu vinte andares e, após um curto corredor, bateu na porta da dirigente, que escorregou para o lado automaticamente.

Octavia Valvete estava sentada em seu sofá vinho, com uma perna levantada à frente; removia os calçados. Ela detestava usar salto alto, mas o fazia mesmo assim; após uma visita a algum setor da OneBionics, sempre libertava os pés. Hoje, usava um vestido de tubo azul-marinho, que não ficava nada mau em sua pele negra e corpo ossudo. Seus cabelos alisados e platinados estavam escovados para trás.

— Já sei o que você vai dizer — adiantou-se Estefen.

— Sabe?

— Que eu não fui gentil com a entrevistadora. — Ouviu a porta se fechar atrás de si.

— Eu poderia dizer isso mesmo. Quando é que escritores não agem de maneira excêntrica em situações sociais, não é? — Finalmente olhou para cima e encarou Estefen, colocando os pés no chão acarpetado. — Ah, como amo ficar descalça!

— Você poderia inaugurar uma nova política na empresa: todos devem andar descalços.

Octavia sorriu. Tinha dentes grandes, talvez inadequados para seu crânio pequeno, mas, de alguma maneira, não ficavam feios nela.

— Nunca sei quando você está falando sério, Estefen. Acho que metade das sugestões sérias que você já me deu acabaram se passando por piada. — Colocou-se de pé e puxou o vestido para baixo. — Não, eu não poderia inaugurar uma política como essa. Sou a principal sócia da OneBionics, mas não a única; e, principalmente, não sou a detentora dos parâmetros de etiqueta difundidos na sociedade ocidental. Talvez você não se importasse em transformar esta empresa num playground, mas alguém precisa assumir o papel de adulto neste lugar, não acha? — Andou até sua própria mesa e se sentou. — Não se acomode, não quero que fique confortável. Inclusive, caso haja alguma maneira de deixá-lo mais desconfortável do que já está, me deixe saber; assim você poderia se sentir tão infeliz por minha causa quanto estou me sentindo graças a você.

O tom de Octavia era casual, mas, mesmo que não fosse, Estefen não se abalaria.

— Se não é sobre a entrevista que você quer falar, sobre o que é?

— Ah, é sobre a entrevista também. Fiz parecer que não era? — Levantou o cenho. — Enfim. Sei que você é um homem das palavras, não dos números. Ainda assim, gostaria que desse uma olhada nisso aqui. — Chegou para a frente e mexeu em sua mesa interativa. O projetor no teto invocou uma porção de relatórios e gráficos diante de Estefen.

— O que é isso?

— Claro que não sabe o que é. Afinal de contas, eu não estaria mostrando nada disso para você caso soubesse. — Buscou sua bola antiestresse numa gaveta e se pôs a apertá-la. — Aquele número ali em cima representa a quantidade de sintéticos finalizados que enviamos para o Dédalo este mês. E aquele número embaixo representa a quantidade deles que removemos do sistema.

Estefen analisou os dados.

— Removemos um número pequeno.

— Eu disse “removemos”? Desculpe, eu quis dizer você removeu — subiu o tom. — É um número alto comparado com o ideal, que, no caso, seria zero. Por que esse número não é zero, Estefen?

Fitou-o severamente.

— Porque tenho feito meu trabalho.

— Resposta errada. Tente outra vez. — Bateu a bola na mesa com um baque. — Pensando bem, nem tente. Deixe que eu responda por você: porque você deliberadamente tem feito algo que eu ordenei que não fizesse.

Estefen poderia bufar. Sua relação com Octavia nunca havia sido amigável. Muito pelo contrário, eles apenas se suportavam — em certos dias mais do que noutros.

— Eram enredos ruins, não podiam fazer parte do serviço — argumentou.

— Você mesmo aprovou essas histórias.

— Numa época em que eu tinha muito menos autonomia na gestão criativa do que tenho hoje.

— Então o problema é a autonomia que você tem hoje?

— Não, é a autonomia que eu não tinha antes. Acabei de dizer isso.

Octavia fechou os olhos e respirou profundamente.

— O OneConnect será anunciado oficialmente daqui a três semanas. Recebemos investimento suficiente para termos, até o fim do estágio beta, mil e quinhentos enredos. Isso significa, no mínimo, dois mil sintéticos. Atualmente, temos pouco mais que três quartos disso, quando já devíamos ter tudo pronto. Agora, quero que pense bastante antes de responder: como acha que alcançaremos a meta se você continuar removendo sintéticos dessa maneira?

— Octavia…

— Mandei pensar direito!

— Não há o que pensar aqui — reagiu. — Você sabe muito bem o motivo por que mandei desfazerem aqueles enredos.

— Não refresque minha memória, por favor.

Ele a ignorou.

— Porque eles não estavam sendo usados propriamente. O objetivo do serviço é proporcionar experiências aos usufrutuários, não transformar este complexo inteiro numa espécie de prostíbulo popular — salientou. — O que mais temos visto desde que os testes começaram é isso. Os usuários não utilizam o serviço para nada além de sexo…

— E desde quando isso é um problema? Deixe que tenham a experiência que bem entenderem.

— Exceto que os sintéticos que criamos são projetados para simularem emoções humanas. Não são meros bonecos sexuais. — Apontou para o relatório tridimensional que ainda pairava na sala. — Os sintéticos que eu removi eram propensos a desenvolver traumas sérios perante assédio ou violência.

Octavia revirou os olhos.

— Pelo amor de Deus! São máquinas, Estefen. Pare de falar de “traumas” como se não pudéssemos resetar a memória deles depois — bradou. — Se não se sentem à vontade sendo usados da maneira como os usuários preferem, faça com que se sintam. Ou não faça, tanto faz. Prometemos dar aos usufrutuários as melhores experiências que já tiveram na vida, e isso inclui toda e qualquer experiência, não apenas aquelas que você considera moralmente aceitáveis. Nossa responsabilidade é com aqueles que investem no nosso serviço, não com o “bem-estar” do nosso produto. Quantas vezes terei que lhe dizer isso?

Estefen bateu as palmas nas coxas, não conseguia conceber o que Octavia dizia. Já haviam tido aquela discussão, e ele não tinha a menor vontade de repeti-la.

— A maneira como os criamos, Octavia… Eles realmente acreditam que são pessoas, está bem? Inserimos lembranças no sistema deles; gostos pessoais; desejos; medos. Tratá-los como meros produtos seria…

— “Desumanizador”, já ouvi esse argumento antes. — Levantou-se abruptamente. — Em primeiro lugar, só é possível desumanizar algo que é humano, isso já está estabelecido. E, em segundo, consegue imaginar como será comunicar nossos investidores de que colocaram o dinheiro deles no lugar errado quando, daqui a algumas semanas, não tivermos cumprido nossa meta? Estefen, preste atenção… — Sua voz finalmente se abrandou, e isso fez com que um calafrio subisse pela espinha dele. — Não é você quem decide o que é concebível dentro da OneBionics. Detesto ter que apontar o óbvio, mas… você só ocupa o cargo que tem por causa da antiga administração. Tinha os contatos certos nos lugares certos. Só que, agora, os contatos certos não estão aqui para lhe dar a liberdade que você acha que merece. Entende o que quero dizer?

Estefen sentiu suas entranhas se regelarem.

— Isso é mais uma ameaça?

Ela riu.

— Por que artistas têm que ser tão dramáticos? — Sacudiu a cabeça. — O que estou dizendo é que questiono seu verdadeiro valor na OneBionics. Não acho que você seja tão útil no cargo em que está.

— Depois de todo o progresso que ajudei a OneBionics a conquistar? — Estefen se exaltava. — Estou aqui há nove anos, Octavia.

— Eu sei, mas, sinceramente, acredito que sua visão de mundo conservadora tem estorvado sua habilidade de trabalhar em prol do interesse coletivo.

— Conservadora? O que…?

Ela levantou a mão no ar, calando-o.

— Não insista. Sabemos que não chegaremos a lugar nenhum deste modo. Um de nós dois está certo, e um de nós está errado. — Deixou que sua declaração se assentasse antes de continuar. — Para não ser injusta, darei a você uma oportunidade de provar que está com a razão. Contratei uma pessoa para supervisionar seu trabalho.

— Me supervisionar?!

— Supervisionar seu trabalho, Estefen. Não deixe que o ego lhe suba à cabeça — bramiu. — Durante os próximos meses, essa pessoa acompanhará você no serviço. Avaliará se você tem tomado as melhores decisões para a OneBionics. Se eu estiver errada e você realmente se provar a pessoa adequada para ocupar a posição de chefe de gestão criativa, não teremos uma discussão como esta outra vez. Além disso, para mostrar que estou dando ouvidos às suas reclamações, pretendo abrir vagas para novos usuários de teste, para nichos que talvez usem o serviço de maneira mais criativa. Aposentados e universitários, provavelmente. Assim, ninguém sai prejudicado, nem eu, nem você.

Estefen estava com as mãos na cintura. Sentia a expressão de choque no próprio rosto.

— Aposentados e universitários? — Como se isso, por si só, mudasse alguma coisa. — Ótimo, abra vaga para universitários se quiser. Mas, ainda assim… Se, sei lá por que cargas d’água, você acreditar que não sou a pessoa adequada…?

Deu de ombros.

— Terei que remanejá-lo aqui dentro — clarificou. — Sinto muito, mas é meu trabalho como dirigente de…

— Papo furado, Octavia — altercou. — Nós dois sabemos o que você tem contra mim, e não tem nada a ver com meu desempenho.

— O que é, então? O que tenho contra você? — Ela trincou os dentes. — Vamos, diga em voz alta.

Ele abriu um sorriso cínico.

— Quer mesmo que eu saia por aí dizendo em voz alta sobre suas intenções imundas? — desafiou. — Quer que todos fiquem sabendo o verdadeiro motivo por que o OneConnect está sendo criado? Não é um serviço de relacionamentos, nem mesmo um serviço de sexo.

O semblante de Octavia permaneceu impassível.

— Veja só quem está ameaçando quem agora — ironizou. — Você não vai contar nada a ninguém, e nós dois sabemos o porquê. Conhece tantos segredos meus quanto eu conheço os seus. Se for um bom menino e fizer seu trabalho direito pelas próximas semanas, não terei por que interferir na sua função aqui dentro; isso não tem nada a ver com nossas pendências particulares. Estamos tão perto do fim! Agora, se você realmente quiser levar para o lado pessoal, sabe muito bem que tem tanto a perder quanto eu.

Estefen se calou por um momento, mas imprimiu no semblante todo o nojo que sentia por ela. Octavia… a razão por que ele não podia abandonar aquele inferno de vez.

Virou-se e socou a porta para que ela se abrisse.

Encerrava a discussão. Talvez fosse a primeira vez que ele deixava aquele escritório sentindo mais asco do que raiva.

Antes que Estefen chegasse ao final do corredor, o elevador se abriu, permitindo que uma outra figura conhecida surgisse diante dele — aquela da qual ele achara que já havia se livrado.

— Sr. Carvenagh! — exclamou Castello, com aquele mesmo sorriso paralisado de antes.

— Saia da frente.

Mas a mulher fez justamente o oposto, permaneceu diante dele, enquanto as portas do elevador se fechavam atrás dela.

— Veio visitar a Sr.ª Valvete? Imagino, então, que você já esteja sabendo — entabulou ela.

Ele tentou atenuar o tom de voz.

— Sabendo o quê?

— Fui contratada pela Sr.ª Valvete para supervisionar seu trabalho durante os próximos meses. Estou a caminho do escritório dela para repassar os primeiros dados coletados — noticiou. Apertou o botão do elevador outra vez, para que Estefen pudesse descer. — Espero que seja um período produtivo para nós ambos. Com licença.

Desviou-se de Estefen e seguiu seu caminho.

Ao entrar no elevador, tudo já começava a fazer sentido. Havia um motivo para que aquela entrevista tivesse sido tão hostil. Castello não tinha sido contratada apenas como publicitária, mas como conselheira administrativa — e o alvo dela era Estefen.

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