Este provavelmente foi o pior momento da minha vida. A dor física, a humilhação e a culpa me consumiam. Apesar do que aquele homem dissera, o preço pago foi insuportável; sentia-me destroçada. Fiquei ali imóvel fitando o teto, sentia uma estranha sensação de vazio, de sujeira. Tudo o que eu mais queria era um banho para tirar o cheiro daquele homem da minha pele. Quando arrisquei olhar para ele, vi que dormia a sono solto. Aproveitei a oportunidade, vesti meu vestido, peguei a maleta com o dinheiro e meus saltos, e saí correndo. Me perdi nos inúmeros cômodos, mas encontrei a porta de saída e corri como um passarinho livre. No térreo, continuei correndo até estar longe daquele prédio. Disquei o número de Kim, que atendeu na terceira chamada.
__“Sofia, por que está me ligando essa hora?” __“Vem me buscar por favor!”, disse chorosa. __“Onde você está?” __“Não sei…” __“Me fale o que tem na sua frente.” Só neste momento que pude olhar o ambiente é que notei que o apartamento era beira mar. __“Muitos prédios…” __“O que mais?” Fui descrevendo tudo que via e ela me pediu para continuar no mesmo lugar. Meia hora depois, ela me encontrou encolhida num banco de praça, com frio e medo. Me aconcheguei no seu carro, o rosto colado no vidro observando a cidade silenciosa. ___“Tem sorte que teu telefone tem GPS, te rastreei. Porque pela sua descrição, nunca chegaria aqui”, Kim disse. Não respondi, parecia que tinha minha boca colada. __“Vou te levar para minha casa, melhor do que você chegar essa hora em casa e toda suja de sangue…” Concordei com um leve aceno de cabeça. Assim que chegamos no pequeno apartamento de Kim, ela me levou para o banheiro. A água fria levava para o ralo meu sangue, minhas lágrimas, minha dignidade. Fiquei tanto tempo ali que Kim foi ver se não tinha passado mal. Ela me deu um roupão que vesti. Kim me deu um chá, enquanto perguntava: ___“Então o que aconteceu?” ___“O leilão foi hoje.” ___“Deu tudo certo?” Uma risada escapou dos meus lábios. ___“Depende do que chama de certo.” E apontando o dedo para a maleta, falei: __“O dinheiro está aqui…” Ela ficou olhando diretamente para a marca no meu pescoço e perguntou: __“Pelo seu estado, o homem que te arrematou não foi gentil…” __“Que homem? é um maldito animal…” __“Você sabe o nome dele?” __“Angelo Moretti.” Kim ficou branca como cera, por pouco não desmaiava. __“Você conhece ele?” __“Como ele é?” “__Alto, musculoso, cabelo comprido…” __“É ele sim…” “Ele quem?” __“Um homem muito poderoso e cruel, Sofia. Fique o mais longe possível dele.” __“É o que desejo, por isso fugi antes dele acordar.” _“Fez muito bem…” Kim ficou pensativa. Ela me fez deitar em uma das camas. __“Descanse querida…” Não consegui dormir. Fiquei ali fitando o teto, engolindo a súbita vontade de chorar. Acordei com o peso da responsabilidade esmagando meu peito. Mavie precisava de cuidados melhores, e eu precisava agir rápido. Fui direto ao hospital, tratei da transferência para um particular, paguei todas as despesas – cada centavo me doía, mas a saúde da minha irmã era prioridade. Ao voltar para casa, congelei. A cena me atingiu como um choque. Meu pai, de joelhos, as mãos amarradas, dois homens brutamontes ao lado, um deles com uma arma apontada para a sua cabeça. __“Pai?...” A voz saiu rouca, um fio de pavor cortando a garganta. Os homens se viraram, meus olhos encontraram os deles. Um sorriso cruel, quase um escarro na minha cara. __“Soltem ele...” Ordenei, a voz tremendo, mas firme. __“Ou ele nos paga, ou vou estourar os seus miolos.” A ameaça ecoou na sala, fria e implacável. __“Eu pago, tenho dinheiro.” A frase escapou antes que eu pudesse pensar. Eu precisava protegê-lo. __“Estamos falando de muito dinheiro, menina.” __“Quantos?” <_“Quatrocentos mil.” A quantia era absurda, mas eu não hesitei. Tirei o dinheiro da bolsa – cada nota parecia pesar uma tonelada. Os homens conferiram o dinheiro várias vezes, incrédulos. Meu pai me observava, um olhar inquisidor, uma mistura de alívio e reprovação. __ “Se salvou, velho...” Sussurrou um dos homens, ele parecia infeliz pelo desfecho, provavelmente queria sangue. Antes de irem, um deles me encarou. __“Já te vi em algum lugar... só não me lembro onde.” Eles subiram em suas motocicletas e sumiram. Desamarrei meu pai, as mãos trêmulas. __“Onde arrumou tanto dinheiro?” A pergunta veio carregada de suspeita. __“Não interessa. Só agradeça que salvei sua vida.” Minha voz saia dura, uma máscara de força que eu mal conseguia sustentar. __“Não aceitarei filha puta nesta casa. Quem é o macho que te deu esse dinheiro?” A raiva do meu pai explodiu, me atingindo como um tapa. Estremeci. A indignação me encheu, uma onda quente que me queimou por dentro. __“Não tem macho nenhum. Fiz um empréstimo...” Menti. Uma mentira para proteger a minha dignidade, para poupá-lo de mais sofrimento. __“Você quer que eu acredite nisso?” Ele duvidava, e eu sabia que ele não acreditaria. __“Mavie está doente, pai, e você ameaçado de morte. Tinha que fazer alguma coisa. Então fui ao banco e fiz o empréstimo.”Menti descaradamente Ele assentiu, a cabeça baixa. Sai de fininho da sala, indo para o quarto. A força que eu tinha demonstrado lá fora desapareceu totalmente. As lágrimas caíram, uma a uma, sem controle. O cansaço, o medo, a mentira, tudo se desfez em um rio de dor. Fiz jantar, uma sopa rala de macarrão, e pela primeira vez durante muitos anos, meu pai comeu comigo. Vez ou outra pegava ele me observando desconfiado. __“E sua irmã, como está?” ele perguntou, quebrando o silêncio. ,_“Estável. Paguei uma clínica particular para cuidar bem dela enquanto aguarda um doador.” __“Entendi. E qual foi mesmo o valor que pegou do empréstimo?” pergunta incisivo __“O suficiente para pagar suas dívidas irresponsáveis e o tratamento de minha irmã.” . Fui para meu quarto mas não consegui dormir, a lembrança do homem grande me tocando voltou como um pesadelo vívido. Eu odiava Angelo Moretti, isso é um fato.