Narrado por Emanuelle Bressanelli
Acordei com o gosto metálico da noite anterior ainda colado na boca.
As palavras da senhora Elisabeth giravam em círculos na minha mente como pássaros enjaulados, batendo asas em desespero. O contrato. O sangue. A linhagem. A maldita herança.
“O Samuel sempre soube do lugar dele.”
Será que sabia mesmo? E se soubesse… por que parecia tão ausente, tão dividido, tão... estranho?
Passei os dedos pelos cabelos, me levantei, calcei os sapatos e abri a janela do quarto. O jardim da frente estava banhado por uma luz suave de fim de manhã. A brisa era morna, mas nada em mim estava em paz.
Eu precisava de ar. Precisa andar. Precisava de silêncio.
Mas então, do alto da escada, ouvi a porta da frente se abrir devagar. Não eram os criados. Era ele.
Samuel.
Andava rápido, mas sem barulho, como quem conhece cada rangido da casa. Estava com a gola da camisa aberta, as mãos nos bolsos e um olhar furtivo, como se quisesse evitar ser visto.
Meu corpo se moveu antes que minha mente pudesse impedir.
Vi quando ele contornou o corredor externo e passou pelo atalho que levava ao jardim dos fundos — uma parte da propriedade que eu ainda não havia explorado. Me escondi atrás de uma parede de pedra coberta por heras.
Foi então que vi.
Uma mulher.
Alta, magra, cabelos escuros e lisos, vestindo algo justo demais para uma visita formal. Ela estava lá, esperando por ele como se já soubesse o caminho e o tempo exato de sua chegada. Quando ele a viu, não houve surpresa. Apenas...
Intimidade.
Os dois se olharam por segundos longos. Ele não disse nada. Apenas a puxou pela cintura e colou os lábios nos dela com uma urgência que doeu ver.
Senti meu estômago revirar.
Não era ciúme. Não podia ser.
Era vergonha. Era raiva. Era a sensação insuportável de ser uma figurante num roteiro antigo onde todos os papéis já estavam ensaiados — menos o meu.
Observei, paralisada, enquanto as mãos dele percorriam as costas dela com a mesma força com que segurava a própria sanidade. Ela sussurrava coisas no ouvido dele e ele sorria, um sorriso que nunca havia me direcionado.
E, por um breve momento, meu corpo me traiu.
Pensei em como seria se ele fizesse aquilo comigo.
O pensamento me enojou. De mim mesma.
Me virei para sair, tentando conter o nó na garganta, mas esbarrei num vaso de plantas empilhado sobre um banco. O som seco da cerâmica quebrando no chão ecoou como um tiro.
— Que porra foi isso?! — ouvi a voz dele, tensa.
Me abaixei, encolhida atrás da parede, e segurei a respiração.
— Tem alguém aí? — ele insistiu, já se aproximando.
Corri antes que pudesse ser descoberta. Cortei caminho pelos corredores laterais da casa, o coração disparado como se estivesse fugindo de um crime que não cometi.
E talvez fosse isso mesmo. Eu não cometi crime algum.
Mas me senti culpada.
Horas depois, ainda atordoada, procurei pela única pessoa que agora parecia ter algum controle sobre essa história.
Senhora Elisabeth.
Ela estava sentada no jardim, em sua cadeira preferida, lendo um livro grosso de capa gasta. Parecia intocável. Inabalável.
— Já decidiu fugir ou morder?
— Preciso da sua ajuda. — disse, sem rodeios.
Ela fechou o livro com calma.
Sentei-me à sua frente, engolindo todo o orgulho que me restava.
— Quero ser digna de Samuel Montes.
A surpresa em seu rosto durou menos de dois segundos, antes de dar lugar a algo que eu não soube nomear. Respeito? Cautela? Cuidado?
— Por quê?
— Porque ele não me vê. Não me enxerga. E não me deseja. Eu vi. Eu vi, senhora Elisabeth. Ele ainda tem outra. E mesmo assim, ele está disposto a cumprir esse casamento, essa aliança...
Ela suspirou e pousou uma das mãos sobre a minha, com um gesto mais materno do que eu esperava.
— Ah, minha pequena... o problema nunca foi você não ser digna. O problema é que ele ainda não entendeu que pode amar o que o destino colocou à frente dele. Samuel vive entre o que quer e o que deve.
— Então me ensine. — pedi. — Me transforme na mulher que ele não possa ignorar. Que ele olhe... e veja. Que ele toque... e deseje. Que ele tema perder.
O silêncio que se seguiu foi preenchido por um canto de pássaro distante.
— Está pedindo um caminho perigoso, Emanuelle. Seduzir um Montes é mergulhar num poço onde amor e destruição têm o mesmo nome.
— Já estou nesse poço, entrei nele no momento em que vocês decidiram nossas vidas sem que estivesse neste mundo, quando nem mesmo sabia se estava no ventre de minha mãe. Só não quero me afogar nele sozinha.
Ela sorriu. Pela primeira vez, sorriu de verdade.
— Então venha comigo amanhã. À ala velha da mansão. Lá, eu vou te mostrar como uma mulher se transforma em lenda... ou em armadilha.
— Eu irei, e tenho outro pedido para lhe fazer, se não for abusar. Não quero ser apenas uma bonequinha de luxo, quero ser treinada como um soldado da Máfia. — Vi seu sorriso se alargar, agora, sim, se orgulho.
— Você terá tudo aos seus pés menina, neste momento você está mostrando que é sim uma Bressanelli, e será ainda mais temida que a mim.
Assenti, sentindo a alma tremer.
Eu não queria amor.
E se essa era a única forma de não ser engolida por esse mundo, então eu me tornaria uma Montes.
E Samuel...
Ah, Samuel.
Ou ele aprenderia a me amar…
ou aprenderia a temer o dia em que me perderia.