Narrado por Samuel Montes
O relógio antigo da sala de reuniões marcava quase meia-noite. O tic-tac lento preenchia o silêncio como um prenúncio. Aquela sala era o coração da casa — e como todo coração que b**e forte demais, parecia prestes a explodir.
Meu pai estava sentado à cabeceira da mesa de carvalho, os olhos fixos em mim como se me esculpisse com o olhar. Uma pasta preta repousava à sua frente, tão comum quanto qualquer outra... se não fosse pelo selo em relevo dos Montes e Bressanelli entrelaçados.
Eu já sabia o que estava ali dentro.
— É isso que você quer me mostrar, pai? — cruzei os braços, o tom ácido. — Um contrato como se eu fosse funcionário da família? Como se ela fosse propriedade?
Valentin não respondeu de imediato. Pegou a pasta, abriu com calma e girou em minha direção.
— Isto não é uma proposta, Samuel. É um pacto. Selado entre famílias que carregam o peso do sangue, da terra, da honra. Você conhece o significado dessas palavras ou se esqueceu?
— Eu conheço o peso. Mas também conheço o custo.
Meus olhos percorreram os termos. E a cada linha, meu estômago se revirava mais.
— Aqui está dizendo... — minha voz falhou por um segundo — que após o casamento, no dia seguinte à noite de núpcias, será exigida prova da virgindade de Emanuelle?
— Exigida, não. Registrada. Por um médico de nossa confiança. — disse ele, sem piscar. — É um detalhe formal. Simples. Parte do compromisso que os Bressanelli assumiram conosco.
— Você ouve a si mesmo? — dei um passo à frente, a raiva me queimando a garganta. — Está tratando uma mulher como um pedaço de território. Como uma terra que precisa ser "validada" antes da posse.
Valentin se levantou, finalmente.
— Ela é. — A voz dele foi firme como uma sentença. — Ela é a última fronteira, Samuel. A última ponte entre um império que quase desabou e a nossa chance de torná-lo eterno. Ou você acha que isso é sobre amor?
— Eu nunca fui ingênuo a esse ponto. — rosnei.
Ele se aproximou, olhos cravados nos meus.
— Então escute com clareza: a união com Emanuelle não é apenas o fim de uma dívida. É o reinício de uma linhagem. O primeiro filho precisa nascer dentro de um ano. E você vai garantir isso.
— E se eu me recusar?
— Então você está recusando o próprio sangue. E comigo, isso tem preço.
Eu ri. Um riso curto, sem graça. Mas os olhos dele não mudaram.
— E o que acontece se ela... se nós não quisermos filhos agora? Ela acabou de fazer 18 anos.
— Não existe "não querer", Samuel. Existe missão. E compromisso. Ou você acha que seus avós se amavam? Que sua mãe me escolheu?
Um gosto metálico subiu à minha boca.
— E quanto a isso aqui? — apontei para o contrato, as palavras que queimavam meus olhos. — "Infidelidade será considerada traição. Sujeita à punição máxima, conforme os costumes da cúpula"? Isso quer dizer que se eu ou ela... se algum de nós—
— Morrerá. — ele disse, sem alterar o tom. — Na máfia, o divórcio não existe. Casamento é aliança. Aliança é pacto. Traição é sentença. Se você pensa em continuar com a vagabunda que chama de sua mulher, está enganado. A Valeria pode esquecer a vida que viveu até hoje as minhas custas.
— Você está louco. E a Valeria nunca viveu as suas custas, pai. Eu sempre dei tudo que ela precisava.
— Com o meu dinheiro, Samuel. E não, não estou ficando louco. Estou sendo realista. E você também deveria ser.
Andei pela sala como um animal enjaulado.
— Isso vai destruir ela. — murmurei. — Vai quebrá-la por dentro.
— Se ela quebrar, então não era digna do nome que carrega.
Meus punhos se fecharam. E por um instante, pensei em bater no próprio pai. Mas me contive. Não por respeito. Mas por ela.
Ela merecia algo melhor que o mundo que estávamos prestes a jogá-la.
— Samuel… — disse ele, com uma calma que me irritava ainda mais —... acredite ou não, tudo isso é para protegê-la também. Com um filho, com seu nome, ela estará intocável. Ninguém ousará tocá-la sem que seja morto antes.
— E se ela não quiser? Se ela resistir até o fim?
Ele apenas ergueu uma sobrancelha.
— Então você terá que fazê-la entender. A seu modo. Com tato, ou com pulso. Mas ela vai cumprir.
Me aproximei da mesa e bati a mão no contrato.
— Eu sou seu filho, não seu cão.
— Você é Montes. E isso vem antes de qualquer outra coisa.
O silêncio entre nós se tornou insuportável. Um campo minado entre duas gerações condenadas a se odiar.
Peguei o contrato e o dobrei devagar.
— Ela não é sua prisioneira. E se você ousar tocá-la com esses métodos, eu juro que nem mesmo seu nome vai te salvar de mim.
— Não vou precisar tocá-la, Samuel. Você vai fazer isso por mim. — Ele sorriu. — E no fim, vai me agradecer. Porque essa menina vai ser o que te salva de você mesmo.
Saí da sala antes que a raiva me fizesse cometer um erro.
Mas ao subir as escadas da mansão, com aquele maldito contrato na mão, senti que estava carregando algo mais que um acordo.
Era uma maldição.
No fim do corredor, passei pela porta do quarto de Emanuelle.
Mas lá dentro…
E eu já não sabia mais o que esperava que ela fizesse.