A porta se fechou atrás de nós com um clique seco, abafando o som da festa. Estávamos sozinhas agora. Apenas eu e minha tia Regina, frente a frente.
Ela estava encostada na parede, braços cruzados, como se já soubesse o que eu ia dizer. Mas eu não sabia exatamente por onde começar. Meu coração batia rápido, meu estômago estava revirado. Eu me sentia traída antes mesmo de ouvir a verdade.
— Por que tudo isso? — perguntei por fim, tentando manter a voz firme. — Por que agora? Após anos me tratando como um peso, por que essa súbita transformação?
Ela arqueou uma sobrancelha, como se minha indignação fosse algo tedioso. Seus olhos, sempre frios, analisaram cada centímetro do meu rosto, como se me dissesse que eu estava atrasada demais para questionar.
— Você cresceu, Emanuelle. Está pronta. E já passou da hora de eu ser recompensada.
— Recompensada? — repeti, sem entender. — Por me fazer viver uma infância miserável? Por me tratar como nada?
Ela deu um passo à frente, a expressão inalterada.
— Acha mesmo que eu aceitei cuidar de você por piedade? Eu nunca quis isso. Seus pais te deixaram para trás com nada além de uma certidão de nascimento e promessas quebradas. E eu aceitei, porque a proposta era boa demais para recusar.
Senti como se tivesse levado um soco. Um zumbido preencheu meus ouvidos.
— Proposta? — minha voz saiu baixa, mas carregada de raiva. — Que proposta?
Ela caminhou até um pequeno armário e tirou uma pasta preta. De dentro, puxou um envelope grosso, amarelado pelo tempo. Jogou-o sobre a mesinha de centro. Sentei sem pensar, abri e vi documentos… e um cheque.
Meus olhos não conseguiam acreditar nos números. A quantia era absurda. Milhões.
— Isso... isso é real?
— A família Montes — disse ela com desdém. — Eles queriam você. Queriam te levar quando você ainda era só uma criança. Diziam que era por obrigação, que tinham uma dívida com seus pais. Mas eu não confiei neles. E recusei. Recusei até me oferecerem isso.
Minha mente girava. Família Montes. Eu já ouvira esse nome? Talvez em fragmentos. Nos cochichos. Num bilhete escondido nos livros antigos dos meus pais. Mas nunca soube o que significava. Agora, parecia que tudo começava a fazer sentido — ou desmoronar.
— Você me vendeu?
Ela riu. Fria. Curta.
— Eu te mantive viva. Dei um teto, comida. E quando crescesse, eu te entregaria. Era o acordo. Eles te queriam com dezoito, não antes.
— Por quê? — perguntei com a voz embargada. — O que eles querem de mim?
Ela hesitou. Por um segundo, vi algo em seu olhar. Medo? Culpa? Mas logo desapareceu.
— Isso é com eles. Minha parte acabou. E você vai com eles esta noite.
— Esta noite?
— Você se arrumou, não foi? — ela apontou com o queixo. — A festa não é para você comemorar. É para te apresentar. Um deles está aqui. Esperando.
Levantei-me de supetão. O vestido que me parecia lindo agora me sufocava. Senti nojo da maquiagem, da perfeição encenada. Tudo era uma vitrine. Eu era a mercadoria.
— Você nunca me amou. — cuspi as palavras como veneno. — E agora quer se livrar de mim como se eu fosse apenas uma dívida paga.
— Exato — respondeu, sem piscar. — E quanto mais cedo aceitar isso, mais fácil será.
Eu tremia. De raiva, de mágoa, de repulsa. Mas no meio daquele furacão, algo dentro de mim se ergueu. Uma força que eu não sabia que tinha.
— Eu vou descobrir quem são os Montes. Vou descobrir o que querem de mim. Mas não do jeito que você planejou. Eu não sou sua moeda de troca, Regina. E não sou de ninguém.
Ela riu de novo. Mas dessa vez, havia um leve tremor.
— Você não faz ideia do que está dizendo. Quando descobrir quem eles são… vai querer fugir.
— Talvez. — Encarei-a com firmeza. — Mas agora eu escolho. Não você.
Saí da sala com os punhos fechados e a alma em chamas. Eu ainda não sabia quem eram os Montes. Mas sabia que, se eles investiram tanto para me ter… eu devia significar algo. E estava disposta a descobrir o quê.
Mesmo que custasse minha paz.
Ou minha liberdade.
Respirei fundo antes de atravessar novamente as portas de vidro do salão. O calor do ambiente me envolveu como um tapa. Risos, música suave, copos tilintando — tudo parecia perfeitamente coreografado, enquanto eu me sentia um erro nessa cena. O vestido colava na pele como um lembrete do que estava prestes a acontecer.
Meus olhos procuraram por ele. O homem que esperava por mim. E então o vi.
Encostado junto ao bar, de postura impecável e olhar afiado, estava Valentin Montes. Era impossível ignorá-lo. Seu terno escuro caía com precisão sob medida, como se cada fio tivesse sido alinhado com propósito. O cabelo grisalho bem penteado denunciava seus sessenta e poucos anos, mas o olhar... o olhar era de quem não conhecia fraquezas.
Nossos olhos se encontraram, e por um segundo, o tempo pareceu travar.
Ele se afastou do bar com passos lentos, firmes. Regina já estava próxima, como se tudo tivesse sido ensaiado. Ele não sorriu. Não tentou ser gentil. Apenas me analisou dos pés à cabeça, como se estivesse inspecionando um artefato raro antes de decidir se valia o investimento.
— Então esta é a menina — ele disse, sem me dirigir diretamente a palavra. — Ela continua virgem?
Meu estômago revirou. Senti a pele gelar.
Regina respondeu antes que eu pudesse sequer entender o que ele queria dizer:
— Sim. Intacta. Nunca foi tocada.
Aquelas palavras caíram sobre mim como um balde de água suja. Meu rosto empalideceu. A náusea bateu forte. Não era só a ideia de ser "entregue". Eu estava sendo avaliada. E o que ele queria… era meu corpo. Minha pureza.
Não era só uma moeda de troca. Era uma oferta.
Meu corpo estremeceu, mas não recuei. Encarei Regina. Ela abaixou os olhos. E então, olhei para Valentin Montes — como se o nome pesasse toneladas agora. E eu entendi. Ele me comprou. Me moldou de longe. Esperou por dezoito anos.
— Você... — minha voz falhou por um instante, mas me recuperei. — Você me esperou crescer para me ter? Como um colecionador esperando o momento certo para abrir a caixa?
Seus olhos se estreitaram. Ainda não parecia surpreso. Apenas irritado com minha ousadia.
— Você fala demais — disse ele, calmo. — Isso não é sobre luxúria, menina. É sobre linhagem. Herança. E legado.
— Eu não sou seu legado — respondi, as palavras cuspidas como veneno. — E muito menos sou uma virgem de ouro para o seu catálogo. Isso é insano.
Regina tentou intervir, mas levantei a mão, parando-a.
— Você me escondeu do mundo para preservar isso? — toquei o colarinho do vestido. — Para manter minha “pureza”? Me fez viver como sombra enquanto negociava minha vida como se fosse um cavalo de raça?
Valentin deu um meio sorriso.
— Você tem o temperamento certo. Isso me agrada. Vai se tornar uma Montes digna... com o tempo.
Me afastei, enojada.
— Eu não vou ser parte disso. Prefiro morrer a carregar esse sobrenome.
Ele deu dois passos à frente e, pela primeira vez, sua voz se tornou uma ameaça velada:
— Você não entende a teia em que nasceu, Emanuelle. Nós protegemos a sua existência todos esses anos. Mas proteção tem um preço. E agora chegou a hora de você retribuir. Deveria me agradecer por finalmente sair das mãos da Regina.
Olhei ao redor. As pessoas fingiam não ouvir. Riam, conversavam. Mas havia olhos sobre nós. Disfarçados, atentos.
Eu estava cercada.
Mas não quebrada.
— Vocês podem ter me comprado — sussurrei, com a garganta seca. — Mas não têm minha alma. E isso, Valentin, é algo que dinheiro nenhum vai conseguir.
Virei as costas e caminhei em direção à saída, com o coração martelando no peito. Eu não sabia para onde ir, mas uma coisa era certa:
A partir daquele momento, eu lutaria com tudo o que sou. Porque agora, eu sabia exatamente contra quem estava lutando.
E não seria só por mim.
Seria pelos meus pais. Pela liberdade que me foi negada.
E pela menina de cinco anos que ainda vive em mim, esperando por justiça.