Capítulo 3 – Pé na estrada

Ótimo.

Certamente fiquei mais perdida do que os esquilos que Alessia chutou pela janela quando fizeram ninho debaixo da minha cama.

— Não acredito — Alessia jogou-se contra a cama e colocou as mãos nas laterais do rosto — Eu não acredito, eu...

Olho para Jesse, de pé, ao lado da porta, com os pés cruzados me perguntando se ficariam bravos por quebrarmos as regras do dormitório. Certamente, aquele nem era o nosso maior problema no momento.

Quero dizer, meu namorado simplesmente aparece do nada e não cogita nem sequer me avisar? Eu não sei mais que tipo de relação estamos mesmo vivendo, nem mesmo uma ligação, SMS ou sinal de fumaça. Silêncio absoluto por algum tempo e de súbito Jesse brota na porta do meu prédio pedindo para ver Alessia? Como supostamente eu devo me sentir?

A resposta é simples: nada feliz.

— O que está havendo? — eu perguntei sacudindo os braços meio furiosa porque ninguém me ousou me explicar o que estava acontecendo.

— Ross foi preso noite passada — Jesse falou.

— Aquele idiota — Ally já estava de pé, jogando suas roupas sujas dentro de outra mala, junto com alguns pacotes de biscoito pela metade e alguma coisa que eu não estava muito certa sobre ser uma aranha de verdade ou não — Eu vou voltar pra casa agora.

— Você enlouqueceu? Você não pode simplesmente ir para casa agora.

— Mas eu vou — Ela calçou um par de botas e prendeu o cabelo — Ross precisa de mim.

E então ela se retirou, lutando para puxar as duas malas pelo quarto até a porta. Jesse se aproximou e me fitou, como se esperasse alguma ação minha. Eu fiquei sem saber o que fazer, sem entender o que estava acontecendo

Uma parte de mim queria gritar com Jesse. A outra parte queria gritar com Alessia. Não havia mesmo nenhum consenso.

— O que o Ross fez?

Jesse sacudiu a cabeça.

— No caminho de volta eu explico tudo.

Seguro seu braço. Ele só pode estar brincando.

— Jesse, eu não posso voltar hoje. Você precisa me explicar o que está havendo. Aqui. Agora.

Ele está me olhando daquele jeito, odeio quando faz isso. Por favor, pare de fazer isso.

— Ross ficou muito louco e saiu gritando que iria fazer Ally e ele se darem bem outra vez. Ele invadiu a piscina da cidade e escreveu o nome dela por toda parte, e isso é só a parte limpa que eu posso contar a você. — Ele me olhou como se estivesse falando sério, eu não estava muito certa disso. — A polícia pegou ele bêbado, seminu, dormindo com uma garrafa de conhaque barato no telhado da cabine da administração.

Franzi o cenho ainda muito confusa.

— Isso não explica o que você está fazendo aqui.

— Ross pediu que eu avisasse Alessia. O que eu podia fazer?

— Isso ainda não explica o que você está fazendo aqui. Você devia estar tendo aulas ainda do outro lado do país. Espere. Desde quando você e Ross são amigos, vocês tipo... não se odiavam?

— Isso foi antes — ele me segurou pelos ombros — Tem muita coisa para explicar, mas só depois que nós voltarmos para casa.

Continuo o encarando perplexa.

— Vou pegar as suas malas.  — Ele insiste.

Eu solto o ar exasperadamente um bocado irritada.

— Eu acho que você não está entendendo, eu disse que eu não posso ir.

— Jannie — Ele me chama assim sempre quando quer me enfurecer — Um amigo seu foi preso, e você não quer voltar para dar algum apoio?

As pessoas sempre me tratam assim, como se eu tivesse alguma obrigação em relação a elas. Isso é extremamente frustrante. Ross McCartney é meu amigo, mas não nos falamos há pelo menos dois anos. Não posso abandonar tudo e viajar por horas a bordo de um carro velho só para salvá-lo sempre que ele se metesse em encrencas, o que infelizmente acontece com frequência desde que éramos adolescentes.

Jesse ergue uma sobrancelha esperando uma resposta. Eu não sei se eu já disse a você, mas Jesse tem o melhor olhar de cachorro molhado que você poderia imaginar, quero dizer, é quase como se ele tivesse uma névoa ao redor daqueles olhinhos que faz com que ele consiga tudo que ele quer. Não sou o tipo de garota imune a isso.

Pelo menos não completamente.

Puxo minhas malas debaixo da cama e me dou por vencida. Parece um daqueles dias estranhos que você sonha que está andando pelado por aí e não tem o que fazer a não ser fingir que tudo está absolutamente normal e sorrir.

— Tudo bem. Me ajude a levar isso para o carro.

E foi assim que eu terminei com o carro abarrotado de malas mal feitas, com Alessia resmungando por todo o caminho sobre como eu deveria me apressar o quanto antes, seguindo Jesse em uma motocicleta pela interestadual. Eu não estava muito certa sobre ele ter habilitação para esse tipo de veículo, ou o quanto eu estaria ferrada por isso. De uma hora para outra, me dei conta que meu namorado do ensino médio se tornou um grande desconhecido.

— Ross fez tudo isso por mim, isso não é romântico?

Talvez só no seu mundo maluco, penso.

— Ele foi preso.

— Por mim! Ninguém nunca foi preso por mim antes! — Ela repete em genuína alegria.

Legal. Acho que todo mundo ficou meio maluco nos últimos tempos.

Meu deus do céu, o que está acontecendo?

Dirigi o dia inteiro até a nossa cidade. Estava com fome, uma ligeira vontade de usar o banheiro, e me perguntando que desculpa esfarrapada eu daria aos meus pais. Por todo caminho, só consegui pensar que aquela seria a pior decisão de toda a minha vida, e que se eu não voltasse a tempo, estaria completamente ferrada.

Eu não sei mesmo o que estava pensando quando aceitei voltar para casa, quero dizer, eu tenho uma vida no campus. Uma vida universitária impecável que eu não pretendo estragar pela maluquice alheia.

Em certo ponto, Jesse parou a moto e se aproximou de mim, retirando o capacete.

— Precisamos conversar mais tarde — ele se inclinou pela janela aberta e me beijou rapidamente.

Pisquei meio surpresa. Tudo isso parecia bem estranho.

Ally desceu do carro com as suas malas se arrastando pela calçada junto com a barra da sua saia. Não faço a mínima ideia do que eles pretendiam fazer, mas espero que tenham um bom plano, ou pelo menos dinheiro suficiente para a fiança de Ross. Eu não tenho nenhum tostão, e não acredito que alguém irá se importar o bastante para arrecadar dinheiro para fiança de alguém como Ross.

— Tudo bem — eu disse, mas é claro que não estava tudo bem.

Quando estacionei na garagem da minha casa, tive aquela sensação que tenho todos os anos de que as coisas mudaram um pouquinho. A grama está mais verde, as janelas estão limpas e as paredes recém pintadas. Talvez meu pai tenha finalmente conseguido aquela sua licença no trabalho, ou conseguido um aumento, é difícil afirmar, as nossas conversas pelo telefone são sempre tão superficiais.

Pensando bem, eu tenho estado tão ocupada me candidatando para aulas extras e trabalhos de meio período que não tenho tido tempo o bastante para lembrar de mim mesma, quanto mais me preocupar com minha família. Me sinto culpada por isso, são meus pais que pagam pelo dormitório e as altas mensalidades da universidade, me sinto ingrata por não ser boa o bastante em gerenciar o meu tempo como deveria.

Os últimos anos passaram pelos meus olhos como um filme, minha vida se resumiu a estudar, estudar e estudar. No tempo livre em que Alessia está em festas ou no shopping, eu estou trancada em meu dormitório estudando, ou cobrando pequenas fortunas para fazer o trabalho de alunos que provavelmente estariam nas mesmas festas que Ally , aproveitando o furor universitário.

Não podem me culpar por ter um futuro definido em minha mente, pra mim nunca houve qualquer outra opção que não fosse o sucesso.

Os últimos raios de sol ainda atravessavam as nuvens e eu podia ouvir os grilos cantando em algum lugar ao redor da cerca-viva que circunda toda a casa. Peguei minhas malas e abri a porta da frente. Meu pai estava sentado no sofá com um consertando algo em cima da mesinha de centro da minha mãe. Na TV, a reprise de algum jogo de baseball rolava.

Surpreso, meu pai ergueu as sobrancelhas e minha mãe veio da cozinha com uma bandeja de pretzels, os dois me encararam por algum tempo como se eu fosse uma miragem ou algo parecido. Para ser justa, eu também estava bem surpresa em estar de volta.

Nesse verão, eu provavelmente arrumaria algum emprego temporário como monitora em algum acampamento ou no quiosque de algum shopping. Talvez nem fosse aparecer por aqui por um longo tempo, por mais que eu desejasse ver meus pais.

— Jane, meu amor! — disse minha mãe soltando a bandeja no colo do meu pai e correndo na minha direção.

Seus braços me enroscaram como correntes e as minhas malas caíram no chão.

— Ei — meu pai constatou — não era para voltar só sábado, querida? Está tudo bem?

— Precisei trazer Ally , ela, hum... está com problemas. Aproveitei para vir mais cedo, não é ótimo? — tentei soar animada o suficiente para que não notassem o meu desespero.

Minha mãe piscou.

— Problemas? Que tipo de problemas?

— Com Ross.

Os dois se entreolharam como se soubessem de alguma coisa.

— Ah. O que há com essas crianças?  — meu pai falou se virando de volta para a TV — eu só espero que você também não abandone os seus estudos como esses irresponsáveis. Eu não sei o que estão pensando, certamente se tornaram almas perdidas. Que Deus tenha piedade.

Ergui as sobrancelhas. A imagem de Jesus Cristo emoldurada sobre a lareira pareceu me encarar por um momento muito longo.

— Carl!  — minha mãe esbravejou e segurou as alças das minhas malas — Não dê ouvidos a ele Jane, seu pai só está de mal humor porque não consegue consertar a droga do rádio do carro. Venha, meu bem.

Mamãe subiu as escadas arrastando as malas desajeitadamente, deixando-as no meu quarto ainda intocado, mesmo que eu não o usasse mais. Me joguei na minha cama e só então me dei conta pela primeira vez do quanto estava cansada por ter dirigido o dia inteiro, e que eu precisava mesmo ir no banheiro.

A cruz de madeira permanecia no alto da porta, toda a decoração cor de rosa havia sido mantida desde os meus quinze anos. Nada sobre aquele quarto me lembrava a mim mesma, nada sobre mim parecia estar muito próximo daquela garotinha de família religiosa em que a foto no painel de colagens próximo à janela retrata. É quase como se em algum momento eu tivesse me tornado uma pessoa diferente, mas não consigo exatamente dizer quando. Em algum momento a Jane adulta enterrou a Jane que deixou aquele quarto rosa para trás.

Tudo isso me perturba, não sei exatamente o porquê. A simples ideia de que não reconheço mais minha própria vida me deixa zonza, eu não sei quem é mais a garota daquela foto. Para alguém com um futuro muito claro em mente, não reconhecer mais o passado parece desconcertante.

— Vou fazer o jantar, você deve estar morrendo de fome e... — Ela sacudiu a cabeça, e então sorriu como se não quisesse fazer perguntas para que eu não pudesse fazê-las também — Se quiser, os pretzels ainda estão quentinhos!

— Mãe, o que o papai quis dizer com “também abandonar os estudos"? Ele está falando de Ross?

Ela me olhou um pouco nervosa.

— Jane, as coisas mudaram um pouco desde o natal, quando você esteve em casa pela última vez — ela segura minha mão de um modo meio preocupado — Quero dizer, se Jesse não contou a você, eu não acho que eu tenha de ter essa conversa com agora.

O que? Do que ela está falando? Eu a encaro furtivamente.

— O que Jesse não me contou, mãe? Quero dizer, ele é o meu namorado, ele devia me contar coisas, certo?

Eu entendo que há um acordo estranho entre nós de mantermos distância durante o semestre e concentrarmos nos estudos, mas ele ainda podia me contar as coisas. Sei que ela e Mary-Ann, minha querida sogra, são amigas e provavelmente se veem todos os domingos na igreja, então com certeza ela saberia sobre tudo.

Minha mãe sempre sabe das coisas, é bizarro.

— Meu bem, seu pai já está furioso eu não acho que...

— Mãe. Por favor.

— Tudo bem — ela respira fundo — Jesse não voltou para a Pensilvânia depois dos feriados de fim de ano, ele largou os estudos, meu bem. Está na cidade desde então. Ele parece viver uma grande bagunça, Jesse pediu para que eu não dissesse nada a você, então dei a ele algum tempo para que pudesse dizer por si só.

Eu me levanto.

— O quê?

— Jesse arranjou um emprego de meio período, comprou uma guitarra e montou uma banda com aquele garoto McCartney. Não é o que Mary-Ann realmente queria para o seu menino, mas o que pode fazer? Vocês são adultos. Nós, como pais, não podemos fazer absolutamente a não ser apoiá-los e distribuir um conselho ou outro. Se vai segui-los ou não, bem... Isso eu não posso garantir.

Jesse montou uma banda?  Eu queria rir na cara dela. Foi quando vi que ela parecia falar bastante sério. Eu não estava mesmo acreditando em todas aquelas palavras, especialmente quando ditas de modo tão natural.

Parecia um momento muito adequado para ter uma daquelas crises de identidade. Subitamente, eu não conhecia mesmo nem o meu próprio namorado.

— Mary-Ann está bastante preocupada — ela continuou — ele está meio obcecado com isso e...

Só que eu não estava mesmo ouvindo. Ah, não.

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