Capítulo 4 — Jesse invade o meu quarto

Às duas da manhã, eu já estava completamente desperta. Mais alerta do que deveria estar, considerando que a noite anterior fora passada em claro por culpa de Ally . Agora, minha vigília noturna era motivada por um turbilhão de pensamentos sobre as coisas que estavam fora do lugar na minha vida. Não que minha vida estivesse irremediavelmente ruim, claro que não. A questão era que eu esperava um pouco mais de mim mesma após o término do ensino médio. Talvez esse fosse o cerne do problema: expectativas elevadas em relação a aspectos que eu, na verdade, não podia controlar.

Casamento, filhos, todas essas aspirações típicas das garotas. No entanto, agora tudo isso parecia fora de cogitação. Primeiro motivo: qual seria a chance de meus pais permitirem que eu me casasse com o cara que abandonou a faculdade para formar uma banda? Obviamente, meu pai não está interessado em descobrir por quanto tempo fui apaixonada por esse cara na adolescência.

Não tenho mais dezessete anos; não deveria viver de lembranças infantis. Mas esquecê-lo não era algo simples, eu o amava. Apesar de minha mãe gostar de Jesse, o segundo motivo era a questão de sair da faculdade, algo que ela considerava fora de cogitação. Para eles, a linha de raciocínio levava apenas a imagens de mim, numa boate, dançando de forma desajeitada. Essa hipótese carecia de detalhes suficientes para sequer ser considerada.

O terceiro motivo, há quanto tempo Jesse estava me escondendo coisas? E que tipo de segredos seriam esses? O medo se instalou ao imaginar que, um dia, poderia acordar descobrindo que ele tinha uma esposa e cinco filhos no Canadá, terminando sozinha e com uma hipoteca impagável. Ou pior, ele poderia estar escondendo coisas porque não queria mais compartilhar sua vida comigo, talvez me trocasse por uma Maria-gasolina ou algo assim.

Afundei minha cabeça no cobertor, sentindo falta do cheiro de amaciante que impregnava as coisas da minha mãe. Não tinha notado até então toda a minha saudades do meu travesseiro, das fotos na parede, de quando tudo era mais fácil antes de ser “adulta”. Até mesmo das vezes em que ficar presa na escola com Jesse parecia terrível, mas ao mesmo tempo reconfortante. Eu sabia que as coisas mudaram e as pessoas cresceram, mas sempre parecia que algo estava faltando desde Eddie.

Continuei encolhida, travando meu maxilar, enquanto o som persistia. Torci para que fosse um besouro comum nessa época do ano, embora não parecesse um besouro, e besouros certamente não sussurram “Jane”.

“Okay, Jane, deixe de ser cagona, levanta esse traseiro magro e vá ver o que está acontecendo. Certo, assim que eu parar de tremer como uma vara verde. Ande logo.” Levantei-me devagar, ainda envolta no meu cobertor, como aqueles mendigos da sétima avenida, e me aproximei da janela, ouvindo o persistente barulho. Me curvei lentamente, constatando que não parecia um fantasma. Talvez fosse apenas um maldito besouro mesmo.

Ergui-me com um solavanco e abri a janela rapidamente, antes que alguém pudesse dizer “corra”.

— Mas o que...

Foi quando aquela pedra acertou bem no meio da minha testa. É, eu sei.

Patético.

— Merda, Jane! — A voz de Jesse soou lá debaixo do jardim. Ele havia escalado pelo canteiro de flores, subindo pela grade onde as ramas cresciam até minha janela.

Jesse assou os pés pela janela e pulou para dentro do meu quarto com surpreendente facilidade. Quando percebi, sua mão já estava em meu rosto, verificando se eu estava machucada ou algo do tipo. Demorei mais do que o necessário apenas checando se meus olhos de fato funcionavam, massageei minha testa e pisque algumas vezes, ainda sentindo o impacto da pedra contra a minha pele.

— Você vai acordar os meus pais — eu o adverti, esfregando a testa — o que você pensa que está fazendo? Você sabe que pode usar a porta como uma pessoa normal?

Antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, ele já me beijara. Isso mesmo, sua mão cheia de dedos já repousava nas minhas costas, e, por um momento, esqueci a fúria que estava prestes a soltar sobre ele. Foi só por um momento, pois no instante seguinte, meio hesitante, o empurrei para longe, fazendo-o cair sentado na minha cama.

— O que foi? — ele perguntou inocentemente.

Foco. Foco. Foco.

A pedra? Não. A pedrada não era o problema. Jesse era o problema.

Ele tinha muitos segredos.

— Não insulte a minha inteligência. — Falei colocando as mãos nos quadris tentando parecer convincente — Não tem nada novo que você queira me contar?

Ele se levantou devagar e piscou. Lá estava ele, repetindo aquilo, encarando-me com aquele olhar capaz de derreter ossos. Não vou cair nessa, não vou. Dei as costas no primeiro momento, cruzando os braços para parecer furiosa. Suas mãos subiram e desceram pela minha cintura, enquanto ele apoiava o rosto no meu ombro.

— Nada em especial.

— É mesmo?

— Você teve um dia cheio, Jeannie. Quer mesmo falar sobre isso? Não estou muito afim de falar, estou pensando em algo mais interessante.

Como terminar grávida, tendo de largar a faculdade, limpar baba de criança do meu ombro e prendê-lo em um emprego de período integral pro resto da vida? Acho que preferia esperar. Eu posso muito bem esperar alguns instante para saber o que diabos ele vinha aprontando nos últimos tempos que o fez pensar que não era bem necessário me contar as coisas.

Não ia deixa-lo me desviar do foco de toda essa conversa desta vez.

 — Estou falando sobre você não ter me contado que largou a faculdade no ultimo natal. Você tinha uma bolsa, Jesse. Sabe melhor do que ninguém o quanto foi difícil.

Silêncio. Agora ele parecia um tanto sério com aquela sua cara azeda.

— Ah, isso. — Jesse revirou os olhos visivelmente desconfortável. — Pensei que nós tínhamos um trato, eu não ia te incomodar com nada disso enquanto estivesse estudando. Lembra? Eu não te incomodei.

— Quando você pretendia me contar? — Soltei o ar devagar pelas narinas.

— Assim que voltasse.

— Estou aqui, Jesse, e eu estou te ouvindo.

Ele piscou pela milésima vez e sacudiu o rosto.

— Você quer mesmo falar sobre isso agora? — Ele se virou e caminhou em direção à janela, e eu não precisava ser nenhum gênio para entender que ele estava tentando fugir. É isso que ele sempre faz quando não está confortável com alguma coisa, ele vai embora.

Não estou muito certa se esse é o melhor jeito de resolver os nossos problemas. Eu nem sei se ele quer de fato resolver algum problema.

— Eu vou voltar amanhã para Darwin.

Ele se virou na minha direção e ergueu as sobrancelhas.

— Você não vai ficar?

— O semestre ainda não terminou, eu não posso largar as coisas dessa forma. Eu só vim trazer Ally de volta.

Ele revirou os olhos.

— Talvez esteja com saudade daquele seu novo amigo cheio da grana.

— Dan? Ele não é meu amigo. É só um imbecil que fica no meu pé. Por favor, pare de bancar o idiota ciumento, até parece que não me conhece bem. Sabe que eu prefiro resolver tudo com uma boa conversa.

— Não vou conversar com você enquanto estiver de cabeça cheia. Descanse, amanhã nós nos falamos. — Ele tentou escapar — Eu quero mesmo te contar tudo pelo que venho passando, eu só não sei se é o momento certo.

Jesse se sentou na beirada da janela já se preparando para descer.

— Você largou a universidade e montou uma banda? Acho que há coisas estranhas demais nessa descrição para que eu possa digerir e descansar em paz. Se não foi para me contar isso, por que me trouxe de volta?

Jesse respirou fundo, eu podia ver que estava irritado.

— Precisamos tirar Ross da cadeia. Nós temos um encontro com o empresário em Nevada amanhã à noite. Você sabe que a família de Ally é influente nesta droga de cidade, se tem alguém capaz de tirá-lo de lá em tempo recorde, essa pessoa é Ally. Eu só ia dizer a você quando tudo tivesse dado certo, mas você acabou tendo de vir junto e eu não me preparei para tudo isso.

Eu pisquei, incrédula.

— Então você só está fazendo isso porque precisa de Ross? — Eu balancei a cabeça indignada — Você não queria realmente dar droga alguma de apoio moral, você só buscou Ally para te ajudar a tirá-lo da cadeia, não estava nem mesmo muito interessado em me ver.  Você é a porra de um imbecil, Blackburn.

Agora, eu estava realmente nervosa. Sempre soube que o sonho dele era cantar, e, por mim, tudo bem; sempre o apoiara com essa ideia de se tornar uma grande estrela, mesmo que, no fundo, achasse que fosse uma perda de tempo. Poderia tê-lo apoiado de verdade, mas era como se nem confiasse em mim. Agora, ele ultrapassara todos os limites.

Eu nem sei mais se o reconhecia.

— Você está falando como a minha mãe. Você não me dá ordens, Jeannie. — Ele diz soando como um adolescente. — Eu não vou ficar aqui escutando a droga de um sermão.

Jesse desceu primeiro as pernas pela janela e se equilibrou na grade, ainda segurando na beirada da janela do meu quarto.

— Então eu acho que a gente devia acabar tudo isso por aqui.

Silêncio colossal. Eu conseguia até ouvir os grilos lá de fora e alguém tossindo em algum lugar na vizinhança.

— Você está terminando comigo?

— Acho que ssim.

Senti meu coração apertar. Não, eu não estava pensando, volta aqui agora e venha me beijar, seu idiota. Me diz que está tudo bem e me conta tudo sobre você. No entanto, ele não fez isso. Ele não voltou. Ele nem tentou lutar por mim.

E eu só estava fazendo um drama.

Por um momento, tudo parecia meio estranho, ainda com aquela cara azeda. Continuei o encarando, me perguntando se ele ia realmente embora e levar isso a sério. Eu não havia falado literalmente a sério; pensei que ele fosse voltar e me encher a paciência como sempre faz, porque as coisas sempre terminam bem entre nós. Eu só estava ameaçando. Mas ele não entendeu o recado por trás das palavras. Leu tudo literalmente.

Droga, Jane.

— Tudo bem.

É tudo que ele disse antes de descer e ir embora pela rua vazia e escura. E eu deixei ele ir.

Deixei ele ir porque estava cansada, cansada demais de todas aquelas omissões.

O que eu acabei de fazer?

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