SEDE DOS MÃOS DO DESTINO— Hoje, meus amigos, estamos aqui para celebrar o nosso sucesso. Finalmente conseguimos comprovar que a nossa Kira é a mesma registrada em 1782, a mesma de 1959, e agora, de 2001 — digo com orgulho. — Obtivemos, por fim, os registros do Dr. Solomov e seus experimentos em Aspen.— Senhor Hugo Hëinz, Kira é propriedade da BioCom. Como pretendemos trazê-la para cá e colocá-la sob nossa jurisdição? — questiona o Sr. Erich Stahl.— Não se preocupe com isso, Sr. Stahl — respondo com tranquilidade. — Estou cuidando disso pessoalmente. Vou designá-la como minha guarda pessoal e, em seguida, farei uma viagem para a "Europa". Durante essa viagem, vamos forjar um atentado. Ambos — eu e Kira — seremos dados como mortos.Faço uma breve pausa, deixando que a tensão se acumule no ar.— Ninguém, até agora, sabe das verdadeiras habilidades de Kira.O sorriso se alarga em meu rosto, alimentado pela antecipação do que está por vir. Seu verdadeiro potencial ainda está dormente, e
A cena que vi nos monitores ainda pulsa na minha mente como um pesadelo que não consigo acordar. Kira. Minha agente. Minha subordinada. A mulher em quem eu depositei mais confiança do que em qualquer outro nesse maldito inferno. Ela me enganou. E agora, tudo que sinto é um misto de fúria, incredulidade e nojo de mim mesmo por não ter percebido antes. Ela não é só rápida. Não é só forte. Eu vi o que ela fez com aqueles homens caídos. Vi o instante exato em que o toque dela se tornou algo diferente. Os apêndices saiam de seus ferimentos, aderindo aos corpos e iniciando o processo, as células dos corpos deles colapsando, sendo sugadas, como se os estivessem devorando vivos e os absorvendo. Se reconstituindo enquanto eles se desconstruiam. Isso não é treinamento. Não é biotecnologia de elite. É algo mais. Algo que beira o abismo entre o humano e o monstro. E ela escondeu isso de mim. Eu sou o chefe dela. O chefe dela, porra! Eu me arrisquei por ela. Apostei tudo na ideia dela, eu
Alessandro está me fazendo perguntas para as quais nem eu tenho respostas. Quem sou eu? Quem fui? Existe essa lacuna dentro de mim, um vazio silencioso e, sinceramente, às vezes sinto como se não importasse.Aurora disse algo que não sai da minha cabeça: ele só amou uma mulher em toda a vida. E ela fala com propriedade. Afinal, é a secretária pessoal dele, está ao lado dele em quase tudo — viagens, almoços, jantares, eventos da empresa, confraternizações. Eles conversam. Ela o conhece.Durante anos, segundo ela — e todos na BioCom comentam isso —, ele esteve em luto. Um luto profundo, constante. Isso me incomoda de uma forma que não sei explicar. Uma sensação amarga, um aperto no peito que mistura ciúmes, inveja e possessividade.Amanda. Esse é o nome que todos sussurram com reverência. Amanda o teve. Ele era dela. E, pelo que dizem, ainda é.E isso me fere de um jeito estranho. Como se algo em mim gritasse que isso não está certo. Que ele não deveria pertencer a ela.Mas agora estou
O cômodo era abafado, úmido, com paredes revestidas de concreto cru. Um único ponto de luz, direto no rosto do prisioneiro, criava sombras longas atrás de mim. O homem à minha frente estava amarrado, com os braços estendidos para trás e os pulsos inchados pelas amarras plásticas. Sangue escorria do nariz e da boca, misturado com saliva e suor. O cheiro no ambiente era metálico, ácido.Fiquei em silêncio. Observando.— Sabe eu realmente detesto esse tipo de abordagem — disse, finalmente, com voz baixa. — Mas vocês sempre escolhem o caminho mais longo. Sempre acham que vão aguentar.Peguei o alicate da mesa metálica. O clique do metal ao ser aberto fez o prisioneiro prender a respiração.— Eu perguntei antes. Várias vezes. Quem deu a ordem. Qual o objetivo com Aurora? O que pretendem fazer com Kira?O homem cuspiu no chão.— Vai pro inferno…Em silêncio, me agachei diante do prisioneiro, fixei meus olhos nos dele. O olhar era calmo. Clínico. Quase vazio. Então, sem eu dizer nada, segure
Hoje o dia começou estranho. Um silêncio denso pairava no ar, como se o mundo segurasse a respiração. Eu sabia — a conversa de ontem ao entardecer foi um divisor de águas. E agora, não havia mais como ignorar o que viria depois.Mas como contar para ele? Como dizer a Alessandro que eu carrego um parasita dentro de mim? Que eu infecto pessoas. Que posso alterá-las a nível molecular, que posso transformar corpos, apagar memórias, moldar consciências...Como dizer que eu talvez seja mais velha do que toda a civilização atual? Que posso ter vivido mil anos ou mais... e não lembrar de absolutamente nada? Nem da minha vida anterior, nem da atual.O que sinto por Alessandro não é simples. É intenso. Quase irracional. É uma obediência cega, algo que beira submissão. Quando olho para as outras pessoas, é como olhar vitrines de manequins: sem expressão, sem luz, sem cor. São peças no tabuleiro, ferramentas, alvos.Mas ele...Ele é cor. É movimento. É vida.Enquanto o mundo gira em preto e branc
Eu ajustei o colar de pérolas com um gesto delicado. Cada detalhe contava — da forma como meus cabelos estavam presos em um coque impecável, ao tom carmesim suave nos lábios. Quando entrei na sala de conferência no centro tecnológico de Brasília, todos os olhares vieram até mim como eu havia planejado. Expectativas, dúvidas, cobiça. Homens e mulheres poderosos querendo entender como nós, da BioCom, iríamos transformar o mundo. Eles não sabiam que já havíamos começado. — Boa tarde a todos. — Minha voz soou doce, firme. — É com grande prazer que apresento, em nome da BioCom, o nascimento do primeiro Polo de Bioengenharia Genética do Distrito Federal. As câmeras se acenderam, jornalistas se agitaram. Os representantes do governo local sorriam ao fundo, satisfeitos por estarem atrelados a algo que soava como o início de uma nova era. E estavam certos. Mas não pelas razões que imaginavam. — Este polo será o centro nevrálgico para pesquisas de aprimoramento humano, com integração total e
Boate Lua NovaEra tarde da noite quando chegamos à Boate Lua Nova — Aurora, Xiaomei, Jair e eu. A cidade parecia respirar diferente ali, envolta em um brilho úmido, com o céu encoberto por nuvens prateadas e um vento suave que roçava a pele como um sussurro gelado. Havia algo belo naquela noite e inquietante.A fachada da boate pulsava com luzes roxas e azuis, refletindo no asfalto molhado como se a cidade estivesse viva, dançando conosco. Lá dentro, o som era alto, grave, o tipo de batida que mexe com a alma antes mesmo do corpo.Apesar de tudo, eu sentia um vazio estranho no peito. Um buraco silencioso que nem a música, nem as luzes, nem a proximidade de corpos preenchiam. Era como carregar o peso de lembranças que não sei se são minhas. Gente me olhava. Sempre olham. Mas não é curiosidade — é receio, medo... A minha presença não é apenas notada, é sentida.Aurora se aproximou com passos leves. Usava um vestido branco que refletia como água ao luar, mas seus olhos azuis estavam car
Eu a vi.Vi tudo.Tudo que ela carregou sozinha.Aurora… é minha irmã.E eu morri.Aquela menina — Amanda — morreu.E, por um instante, eu desejei que tivesse sido definitivo.Porque descobrir que fui ela me enoja.Doente, frágil, vulnerável. Um corpo quebrado. Uma existência lastimável.E saber que alguém como Alessandro a amava, não a mim, mas à ela.Aquela versão moribunda. Aquela sombra de gente.Ela era a escolhida. Não eu. Não Kira.Não essa força que rasgou a morte e voltou com os olhos abertos.E ainda assim, ele me considerou apenas uma propriedade da BioCom, uma arma, algo útil. Mas como se Amanda fosse a jóia que se perdeu.Como se o amor dele tivesse morrido com ela.Isso queima. Corrói.E então vejo Aurora — e tudo que ela escondeu.As visitas, as gentilezas, os sorrisos contidos, a insistência…a proximidade.Não era por Kira. Era por Amanda.Era pelo fantasma que eu deixei para trás.Ela tentou me alcançar, mas não por quem eu sou. Por quem eu fui.E Teresa…Até Teresa s