Talvez fosse a chuva incessante, que tamborilava sem piedade nas janelas desde a madrugada, como se o próprio céu estivesse de luto.
Talvez fosse o Napoleão — meu cachorro dramático e chantagista — que, pela primeira vez em meses, não tentou me acordar mordiscando meu pé em troca do café da manhã.
Talvez fosse o maldito despertador que, em um ato de traição, decidiu simplesmente não tocar.
Ou talvez fosse a última gota do meu sagrado café que acabou ontem, e que, no caos da manhã, eu esqueci de repor.
Talvez — e esse é o golpe final — fosse o meu velho fusca amarelo, que resolveu morrer na garagem, emitindo apenas um suspiro deprimente quando tentei dar partida.
Tudo, absolutamente tudo, parecia conspirar contra mim. Sinais claros, gritantes, de que aceitar esse emprego maluco como babá de trigêmeos era a pior ideia que já tive na vida. Mas mesmo assim, lá estava eu.
Espremida no ônibus lotado entre um homem tatuado até o pescoço, com cabelo rosa-choque e fone de ouvido vazando um heavy metal ensurdecedor, e uma senhora que devia pesar pelo menos 150 quilos e que, indignada, fazia um monólogo interminável sobre como detestava o clima úmido e triste desta cidade miserável.
Eu me equilibrava como podia: um copo de café morno numa mão, e a outra agarrada com força à barra de ferro acima da minha cabeça — única coisa entre mim e a queda dramática que, com certeza, levaria mais umas cinco pessoas comigo.
Era isso. O resumo perfeito da minha vida naquele momento: caos, café ruim e decisões questionáveis. E, mesmo assim, lá estava eu. Indo direto para o olho do furacão chamado “trigêmeos”.
Onde, em nome de tudo que é sagrado, eu estava com a cabeça? Cuidar de trigêmeos? TRIGÊMEOS?! Merda… eu mal consigo cuidar de mim mesma sem causar um desastre por dia!
E esse pai? Onde ele estava com a cabeça? Será que ele realmente leu meu currículo? Porque, sinceramente, só pode ter passado o olho e pensado: “Ah, essa aqui parece desesperada o suficiente para aceitar qualquer coisa.” Porque se ele tivesse lido com um mínimo de atenção, não seria idiota a ponto de me contratar pra cuidar de três crianças ao mesmo tempo.
Meu glorioso histórico profissional consiste em dois marcos inesquecíveis. O primeiro: secretária em uma locadora de DVD’s — sim, DVD’s, aqueles discos jurássicos que ninguém mais usa. Fui demitida porque, tentando alcançar A Pequena Sereia, derrubei TODAS as estantes de filmes como se fosse uma cena de ação mal coreografada.
O segundo: atendente no Starbucks. Onde, num momento de total pane cerebral, deixei a máquina de sorvete aberta e transformei o chão da cafeteria numa piscina de morango. Literalmente nadei naquele troço por duas horas até me lembrar que existia uma tomada. UMA. TOMADA. Era só puxar.
Maldita pequena sereia. Maldito sorvete de morango.
E justo quando eu achava que nada podia piorar, o metrô decide sacudir e tocar "Bang" no volume máximo. Por um segundo achei que fosse o sistema de som do vagão. Até perceber que a música irritante vinha da MINHA bolsa. Claro. Porque desgraça pouca é bobagem.
Com uma ginástica que desafiava as leis da física, equilibrei meu copo de café numa mão e agarrei a barra de ferro com a outra. Usei o que restava de coordenação motora pra abrir o zíper da bolsa enquanto revirava tudo como uma criminosa em busca de provas. Finalmente achei o celular. Atendi, enfiando o aparelho entre o ombro e a orelha, enquanto tentava fechar a bolsa sem derrubar minha dignidade no chão junto com as minhas coisas.
— Por que você não foi de carro?! — gritou a voz da Jessica no telefone, tão alta que me fez dar um pulo e quase derrubar o copo de café.
— Não grita, inferno! — resmunguei, ajeitando a bolsa no ombro e pegando o celular com mais cuidado. — O carro não quis ligar, então... metrô mesmo.
Eu já sabia que ela iria me xingar até perder a voz por aparecer no primeiro dia de trabalho cheirando a gente espremida em transporte público. Mas o universo decidiu que esse ainda não era o meu fundo do poço.
No exato momento em que pensei isso, o metrô fez uma curva tão brusca que o café voou inteiro na minha blusa, me desequilibrei e esbarrei com força na senhora ao meu lado — a mesma que reclamava do clima desde a estação anterior. Ela cambaleou, tropeçou e caiu com tudo em cima de um adolescente magrelo, que, pelo som que saiu dele, perdeu a alma junto com o ar dos pulmões.
— Merda! Merda! Merda! — xinguei alto, tentando limpar a blusa com a mão suja de café, o que obviamente não ajudou em absolutamente nada.
Enfiei o celular no bolso, esquecendo completamente que Jessica ainda estava na linha, e abracei a barra de ferro como se ela fosse meu último fio de sanidade. Tirei o casaco, tentando usá-lo para limpar a blusa, mas só consegui piorar a situação: a mancha espalhou ainda mais e o sutiã rosa florescente que eu ingenuamente tinha escolhido naquela manhã resolveu dar um olá para o mundo.
Num surto de dignidade, vesti o casaco de novo e fechei o zíper com tanta força que quase o quebrei.
— Eu devia ter ficado na cama! — murmurei, entre os dentes, para ninguém em especial. Ou talvez para o universo, pra ver se ele se tocava e me dava uma folga.
Percebi que o metrô já estava parado na estação onde eu deveria descer — e claro, bem na hora em que meus neurônios decidiram tirar um cochilo. Me lancei para fora do vagão como se minha vida dependesse disso, finalmente sentindo o ar fresco invadir meus pulmões, substituindo o perfume nada discreto de suvaqueira alheia e desespero coletivo.
Corri. Duas quadras inteiras com o café seco grudado na blusa, o zíper do casaco arranhando meu pescoço e o cabelo desgrenhado parecendo que eu tinha acabado de sair de um furacão. Já estava atrasada, e com certeza parecendo uma fugitiva da moda e da pontualidade.
Então, eu parei. Bem em frente à casa.
Quer dizer... casa era bondade da minha parte. Aquilo era uma mansão. Tipo aquelas que a gente vê em novela das nove e tem certeza de que nem em cinco encarnações conseguiria pagar o IPTU. Tinha uma fachada branca com colunas, um portão imenso, e juro que até os arbustos pareciam ter sido podados por um artista renascentista.
Me aproximei do interfone ao lado do portão e, num ato de desespero, tentei ajeitar o cabelo com os dedos. Um esforço completamente inútil. A essa altura, meu reflexo parecia mais uma mistura de poodle molhado com estátua do Louvre mal restaurada.
Toquei o botão e esperei. Alguns segundos depois, uma voz masculina e séria saiu do alto-falante:
— Em que posso ajudá-la?
Me aproximei do aparelho, quase enfiando o nariz nele, sem saber se ele conseguia me ouvir de verdade ou se era só pra me assustar.
— Sou a nova babá! Hoje é meu primeiro dia pra cuidar dos trigêmeos. Meu nome é Anabelle — falei um pouco mais alto, com aquele tom de "por favor, me deixa entrar antes que eu desmaie na calçada".
Houve uma pequena pausa do outro lado, e então a voz retornou:
— Sim, Srta. Montgomery. Pode entrar.
O portão fez um clique elegante — até o barulho era rico — e eu engoli em seco. Era oficial: não havia mais volta.
Babá de trigêmeos. O que poderia dar errado?