5. Uma nova chance

Clarice

A primeira claridade da manhã entra pelas frestas da janela, desenhando listras douradas sobre o quarto de madeira. Pelo cheiro no ar — café fresco, pão assado, algo levemente adocicado — eu percebo que não estou sonhando. Estou realmente longe de Houston. Longe dele. Longe de tudo que destruiu a minha vida.

Tento me sentar devagar. O corpo ainda dói, mas não é nada comparado ao que já suportei. Respiro fundo. Pela primeira vez em muito tempo, sinto... silêncio. Não aquele silêncio tenso que antecede uma tempestade, mas um silêncio real, quase acolhedor.

Levanto com cuidado e percebo que minha roupa havia sido trocada por uma camisa de algodão e um short de moletom limpo. Talvez Lila, a nana que John mencionou, tenha sido responsável. Ou talvez ele mesmo. Não sei. Mas, pela primeira vez em anos, alguém cuidou de mim sem querer algo em troca.

A porta se abre devagar.

— Bom dia, Clarice. — A voz calma de Lila me alcança antes mesmo que eu a veja. — Consegue se levantar?

Assinto. Lila sorri, ajeitando o lenço florido que cobre parte de seus cabelos grisalhos.

— Preparei café. E John pediu para te chamar quando acordasse. Ele está no galpão, mas disse que quer te apresentar aos animais hoje cedo, se você estiver se sentindo bem.

A ideia desperta algo dentro de mim. Não é exatamente empolgação... é mais como reencontrar uma parte minha que ficou perdida no caos.

— Eu... acho que consigo — respondo.

— Ótimo. — Ela se aproxima e toca meu braço de forma leve. — Você está segura aqui, querida. Não precisa ter medo de andar pela casa.

Aquelas palavras fazem um nó subir pela minha garganta. Seguro as lágrimas antes que caiam e apenas agradeço com um sorriso fraco.

Ao sair do quarto, sinto um calor familiar percorrer meus sentidos. O cheiro de bolo, café, madeira antiga. Tudo é tão simples... mas tão diferente da vida sufocante que eu tinha com Richard. Ali, cada detalhe parece respirar paz.

O corredor leva até a cozinha, onde Aurora está sentada na bancada, usando pijamas rosa, os pés balançando no ar enquanto mordisca um pedaço de bolo de milho.

Quando me vê, seus olhos azuis se arregalam.

— Você acordou! — Ela quase pula da cadeira, mas se controla. — Eu achei que você ia dormir cem anos igual a princesa do papai.

Sorrio sem conseguir evitar.

— Acho que só precisava descansar um pouco.

Aurora me observa de cima a baixo com uma curiosidade tão pura que quase me desarma. Então, ela estende uma cenoura — sim, uma cenoura — como se estivesse me entregando um tesouro.

— Toma. É pra você dar pra Estrela. Ela é minha égua favorita. Se você der uma cenoura pra ela, ela vai gostar de você.

Dou uma pequena risada.

— Obrigada. Vou lembrar disso.

— Papai disse que você é veterinária. — Aurora balança as pernas novamente. — Isso quer dizer que você sabe falar com cavalos?

— Não exatamente "falar", mas...

— Então sabe! — ela conclui sozinha, empolgada.

Antes que eu possa responder, a porta dos fundos se abre.

John entra coberto de poeira, usando chapéu e camisa xadrez, com o cheiro de campo impregnado na pele. Mas não é isso que chama minha atenção. É o olhar dele ao me ver de pé. Não é pena. Nem curiosidade invasiva. É... alívio. E algo que não consigo decifrar completamente.

— Bom dia, Clarice — diz ele, tirando o chapéu e se aproximando. — Como está se sentindo?

— Bem melhor. Obrigada por tudo.

Ele inclina a cabeça, como se aceitasse a gratidão, mas sem se sentir confortável com ela.

— Se tiver forças, quero te mostrar a propriedade. Assim você decide se aceitar o trabalho ainda é uma boa ideia.

— Eu aceitei ontem — digo baixinho, mas firme. — E não mudei de ideia.

John parece refletir por um instante. Ele cruza os braços, camisa grudada ao corpo por causa do trabalho da manhã, e então sorri — um sorriso pequeno, mas real.

— Então vamos começar.

Aurora desce da cadeira com um salto e pega a minha mão, apertando-a com uma confiança que me surpreende.

— Eu posso ir, papai?

— Pode — ele concorda, mas lança para mim um olhar suave. — Se você estiver confortável com isso, claro.

— Estou — respondo, apertando levemente a mão de Aurora.

Saímos pela porta dos fundos, e o vento fresco da manhã toca meu rosto. A fazenda se estende diante de nós como uma pintura viva: pastos verdes, cercas longas, galpões de madeira e cavalos que parecem saídos de um sonho.

E, no meio de tudo isso... John. Caminhando ao meu lado. Forte. Silencioso. Atento.

Ele aponta para o estábulo.

— Aqui ficam os que precisam de acompanhamento mais constante. Uma das éguas, a Estrela, está prenha. Foi por ela que viajei à noite. O suplemento que ela precisava estava em Houston.

Meu peito aperta por um segundo. Houston.

Mas deixo a dor passar.

— Quero muito vê-la — digo.

John me olha, e não sei se imagino, mas vejo algo como... confiança.

Quando entramos no estábulo, a luz amarela ilumina as baias, revelando cavalos que relincham suavemente com nossa chegada. Aurora corre até a Estrela, acariciando-a com carinho infantil.

— Ela é linda — sussurro, me aproximando devagar.

— Ela gosta de pessoas que falam com calma — John diz. — Acho que vai gostar de você.

Coloco a mão sobre o pescoço do animal e sinto o calor. Três segundos depois, Estrela suspira, relaxando completamente.

— Viu, papai? — Aurora diz, orgulhosa. — A Clarice fala cavalo!

John solta uma risada baixa, e por um instante, nossos olhares se encontram. Há algo ali... algo que eu não deveria sentir tão cedo. Mas que brota mesmo assim. Pertencimento. Segurança. Começo.

Ele se aproxima um pouco mais.

— Clarice, quero ser honesto contigo. — Sua voz baixa tem um peso que me faz encará-lo. — Eu não sei o que você viveu. Não sei o que deixou para trás. Mas sei reconhecer quando alguém precisa de um recomeço. E, se você quiser... pode começar aqui.

Meu coração dispara.

Aurora se vira para mim, olhos brilhantes, como se tivesse acabado de ver o Papai Noel em pessoa.

— Você quer ficar? — ela pergunta, com uma inocência que corta meu ar.

E eu, que perdi tudo... Encontro ali três pares de olhos — o da menina, o do cavalo, e o de John — esperando minha resposta.

Engulo em seco.

E pela primeira vez desde que fugi... sinto como se não estivesse caindo.

— Quero — digo. — Quero ficar.

John solta o ar devagar, como se estivesse segurando a respiração. Aurora b**e palminhas. E Estrela encosta o focinho na minha mão, selando o momento sem saber.

O que eu não imagino... É que esse recomeço ainda vai mudar tudo. Para mim. E para eles. Porque nenhuma vida cruza outra por acaso. Nunca.

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