— Ótimo, obrigado pela ajuda, Henry! - Rafael agradeceu dando um tapinha em suas costas.
Eu pude ver tudo de onde estava. Nos ínfimos segundos antes que Henry me visse eu senti que tudo se movia mais lentamente, como se minha visão estivesse em câmera lenta. Eu pude sentir minha respiração ficando mais pesada, era mais difícil puxar o ar. Meus olhos se mantiveram fixos nele, tentava compreender como a improbabilidade de reencontrar meu algoz novamente tinha se convertido na minha atual realidade. Ele se virou e continuou caminhando em direção ao hall de entrada enquanto olhava para o chão sorrindo com satisfação. Rafael vinha atrás dele, até que me viu e diminuiu o passo.
— Helena. - Rafael falou com o mesmo tom de surpresa que uma criança carrega na voz quando é pega fazendo algo que não devia. — Eu… achei que você estivesse na entrevista.
Quando Henry ouviu meu nome, ele levantou o rosto e nossos olhares se encontraram. Eu senti um vazio crescer no meu peito, um vazio que parecia quase tão profundo e consumidor quanto o que eu senti naquelas manhãs que se sucederam a perda da minha bebê. Tudo voltou, eu não o via há tanto tempo, pensei que seria mais fácil agora, mas o trauma desconhece o passar do tempo, ele se crava no nosso corpo e permanece lá, queimando como no momento em que aconteceu.
“Eu sou a filha de minha mãe”, repeti para mim mesma em silêncio, “eu herdei sua força.”
Engoli em seco e molhei os lábios pegando minha bolsa. Ajeitei minha postura e com o queixo erguido falei:
— Eu passei lá sim, mas preciso falar com o senhor, Dr. Rafael. Podemos? - Gesticulei em direção a sala dele e passei direto por Henry, sem cumprimentá-lo ou reconhecer sua presença.
Eles provavelmente ficaram me olhando, mas eu apenas segui até entrar na sala. Fiquei esperando de costas para a porta. Até que ouvi passos se aproximando, uma presença surgiu na sala e fechou a porta atrás de si.
— Helena. - Henry… A voz dele uma vez foi mel para os meus ouvidos, mas agora era como um demônio arranhando as unhas num quadro negro. — Eu não sabia que ia te incomodar ao vir aqui. São negócios, sabe?
Eu respirei fundo, lentamente, usando minhas melhores técnicas para me controlar.
— Não me incomodou, Henry. Estou bem, apenas surpresa. - Falei me virando para ele e cruzando os braços enquanto me encostava na mesa. — Agora, se me dá licença, tenho assuntos a tratar com meu chefe.
— Tem certeza? Você parece incomodada. - O tom dele parecia tentar emular uma preocupação, mas era claramente cinismo.
— Eu não estou incomodada, Henry, estou com pressa.
— Helena, você… Já faz um ano. Você não fez terapia? Eu te paguei uma boa indenização durante o divórcio, achei que fosse buscar um terapeuta.
Meu queixo caiu e eu me inclinei para frente incrédula. Não fazia o menor sentido que aquele homem realmente tivesse a coragem de me dizer aquilo. Mas também, ele teve a ousadia de me trair grávida, o que eram algumas palavras crueis? Eu tinha me esquecido dos joguinhos dele e nem todas as técnicas de respiração do mundo me ajudariam a controlar a revolta que ele tinha engatilhado em mim.
— Terapia, Henry? TERAPIA? EU PERDI UM BEBÊ, HENRY, EU PRECISAVA ERA DE UM MARIDO, MAS ELE TAVA OCUPADO DEMAIS FUDENDO A ESTAGIÁRIA! - Eu explodi. Com certeza Rafael e Luísa me ouviram do lado de fora, talvez até Pedro, se estivesse em sua sala. Mas não era um problema com o qual eu me preocupava no momento. Eu toquei o rosto com a ponta de meus dedos e voltei a focar na minha respiração para chorar de raiva, uma tentativa de me recompor depois de gritar aquelas palavras que rasgaram meu peito e atravessaram minha garganta.
— Sabe, Helena… Eu também perdi uma filha. - Ele falou com uma tristeza cínica na voz, como se realmente houvesse algum tipo de luto ou lamentação nele. Era demais para mim.
— Eu juro por Deus, Henry - Declarei com ódio escorrendo pelas palavras, um tom mais baixo e controlado. — Se você disser isso de novo, se você vier com esse papinho de “pai sofredor”, eu vou cometer um crime do qual eu não vou me arrepender.
Provavelmente, se eu estivesse em meu estado normal, eu não teria dito isso. Juridicamente falando era uma ameaça que podia ser usada contra mim, mas ele já tinha me tirado do sério há muito tempo com toda aquela conversa. Ele ficou em silêncio me olhando nos olhos, a tensão entre nós era quase palpável. Eu sustentei seu olhar, eu queria que ele soubesse que não era uma ameaça, era um aviso genuíno da fúria de uma mulher traída, de uma mãe em luto eterno.
— Tudo bem. - Ele falou mudando completamente a postura para uma mais relaxada. — Só não ache que eu vou deixar de atender um cliente por causa de um chilique seu. - A frieza em sua voz se afastava completamente do tom melancólico de antes. Ele era um mestre na interpretação, eu realmente tinha me esquecido disso.
Henry se virou, abriu a porta e saiu da sala sem nem me dar o tempo de responder. Chilique? Era isso que ele achava que eu estava tendo? Mas, pensando bem, era melhor assim. Quanto mais atenção eu desse a ele, mais ele teria munição contra mim. Andei de um lado para o outro por algum tempo, observei o chão como se fosse encontrar alguma resposta nele.
— Helena. - Dessa vez a voz não me engatilhou, era Rafael. — Você está bem? Olha, eu -
— Nem precisa, Dr. Rafael, o senhor não me deve explicações sobre os serviços que contrata para sua empresa. - Eu o interrompi tentando ser o mais respeitável possível, dado o cenário. — Eu só fui pega de surpresa, ele é meu ex marido e isso acaba mexendo comigo. O senhor sabe que não foi um divócio amigável, mas eu estou bem.
— Não, não, eu quero dizer que realmente não sabia que você vinha aqui hoje. Eu achei que ia passar a maior parte da manhã lá na entrevista, talvez até já começasse o processo de admissão. Então, imaginei que vocês não iam se cruzar. - Eu podia sentir que havia uma preocupação genuína na voz de Rafael, ele sempre foi bom comigo. Era um advogado sênior, mais velho que eu, 45 anos, um bom homem.
— Então, sobre a entrevista… - Eu hesitei tentando encontrar as palavras, mas antes que pudesse continuar, Luísa entrou na sala.
— Perdão por interromper, Dr. Rafael, Dr. William Boniasse está no telefone aguardando.
Ótimo, pensei, esse dia só melhora.