O cheiro do café chegou antes do som dos passos. Eu desci as escadas como quem entra num campo minado. A mansão estava silenciosa, impecável, como sempre. Nada fora do lugar. Nenhuma emoção visível. Tudo engomado, alinhado, sufocante.
E lá estava ele.
Matthias. Sentado na cabeceira da mesa da cozinha gourmet como se fosse um quadro em preto e branco de um CEO condenado por excesso de poder e charme criminoso.Camisa branca dobrada até os cotovelos. O cabelo molhado, recém-saído do banho. E a expressão… completamente neutra. Como se a madrugada de tensão no corredor tivesse sido um delírio só meu.
— Bom dia – soltei, sentando na outra ponta da mesa.
— Dormiu bem? – ele perguntou, sem tirar os olhos do jornal.
Ah, claro. Jornal físico. Porque o Matthias Kane não lê em tela. Ele rasga o mundo em páginas impressas enquanto decide quem vive, quem morre e quem merece café.
— Dormi como uma princesa… num castelo cercado por grades invisíveis.
Ele folheou uma página.
— Sempre dramática.
— Sempre tirano.
O mordomo — sim, havia um mordomo, porque claro que havia — me serviu café sem que eu pedisse. Estava quente. Forte. Amargo. Quase tão intenso quanto o homem sentado à minha frente.
Matthias ergueu o olhar por um segundo.
— Vai sair hoje?
— Você quer saber ou está perguntando só pra ter o prazer de dizer “não”?
Ele pousou o jornal. Finalmente.
— Preciso que esteja pronta às 14h. Vamos sair.
— Ah, que fofo. Um encontro? — sorri. — Vai me levar pra conhecer sua rede de lavagem de dinheiro? Ou hoje é dia de tráfico de influência?
— Reunião. Em Long Island.
— Você sempre leva suas... responsabilidades pra reuniões?
Ele se inclinou na cadeira. Um movimento mínimo. Mas a tensão que isso trouxe me fez travar a respiração.
— Você está sob minha custódia. Vai onde eu for, quando eu quiser.
— Engraçado… isso soa mais como um relacionamento abusivo do que como proteção.
Ele ignorou. Claro que ignorou. Matthias Kane ignora o que não consegue controlar.
— Vista algo sóbrio. Discreto. Profissional.
— Ah, então nada que mostre o pecado que você insiste em fingir que não vê?
O garfo dele pousou no prato com um estalo seco.
— Sophia.
— Matthias.
Nos encaramos. O café esfriava. O mundo parava.
Até que ele soltou, com a voz firme, como se me avisasse:
— Cuidado.
— Com você? Sempre. – sorri, pegando a xícara com calma. — Mas nunca o suficiente para parar.
Ele ficou me olhando por longos segundos. O tipo de olhar que carrega promessas que nunca deveriam ser feitas em voz alta.
Quando ele falou de novo, a voz estava baixa, mas firme:
— Se cruzar meu limite de novo... eu não vou parar.
Dei um gole no café. Olhei direto pra ele.
— Então não finja que existe um.
***
O relógio marcava 13h47.
No espelho, uma mulher me encarava com a calma de quem já decidiu que, se fosse queimar no inferno, iria montada num salto e rindo alto.
O vestido era preto. Tubinho justo, gola alta, recorte nas costas. Comportado o suficiente pra não escandalizar, sensual o bastante pra deixar Matthias Kane sem ar por meio segundo — e só meio, porque o orgulho dele não permitia mais.
Cabelos presos num coque limpo. Brinco pequeno. Batom nude. Perfume amadeirado com fundo doce. Sofisticada. Estratégica. Letal.
Bati a porta do closet e saí do quarto como se o corredor fosse minha passarela particular.
E dei de cara com Gabe Kane, encostado na parede, braços cruzados, camisa preta dobrada, sorriso sacana no rosto como se tivesse sido contratado exclusivamente pra me provocar.
— Uau – ele assobiou, erguendo uma sobrancelha. – Vai destruir corações ou arruinar vidas hoje?
— As duas coisas, se der tempo – respondi, passando por ele.
— Então vai perfeita. O Matthias vai surtar internamente. Externamente ele vai só dizer “troque de roupa” com aquele tom de “sou um iceberg de ressentimento contido”.
— Ele pode pedir. Não significa que eu vou obedecer.
— Essa é minha garota – Gabe sorriu, andando ao meu lado até o hall. – Sabe que ele só está resistindo porque prometeu pro seu pai, né?
Parei. Olhei pra ele. Frio.
— E você sabe que esse é exatamente o problema.
Ele sorriu de lado. Um sorriso mais sombrio.
— E se ele quebrar a promessa... vai te destruir. E vai se destruir junto.
— Isso nunca foi sobre amor, Gabe. Não quero nada com o seu irmão. A única coisa que eu quero, é sair de perto dele o mais rápido possível.
— Ah, não? – ele inclinou a cabeça. — Porque olhando vocês dois… não é o que parece.
A buzina do carro ecoou pela garagem.
Gabe apontou pra escada.
— Hora do espetáculo. Mas me avisa se quiser fugir no meio. Eu escondo você num cassino russo em Vegas.
— Anotado.
Desci os últimos degraus e lá estava ele.
Matthias.
Ele me olhou por cima dos óculos.
Mas a respiração dele...
Ela entregou tudo.
— Está atrasada – ele disse.
— São 13h58. Ainda tenho dois minutos pra te irritar.
Ele abriu a porta do carro com um gesto quase teatral.
— Entra.
Entrei.
O carro tinha cheiro de couro caro, silêncio calculado e tensão sexual sufocante.
Ele deu a volta e entrou também. Ajustou o cinto. Ligou o motor.
— Se você usar esse tom comigo de novo na frente das pessoas...
— Vai fazer o quê? Vai me tirar do evento no colo?
Ele me olhou de canto. Um músculo no maxilar saltou.
— Você não faz ideia do que eu sou capaz.
— E você finge muito bem que não quer fazer nada.
Ele acelerou. E o carro partiu.
Na estrada, só o som do motor e o cheiro dele. E o fato de que cada centímetro naquele banco me fazia querer encurtar a distância.
Ele não disse mais nada.
Mas o jeito que segurava o volante, com os dedos tensos e a mandíbula travada...
Dizia tudo.
***
O carro parou em frente a uma mansão tão grande quanto desnecessária, cercada por colunas romanas e gente de terno que carregava armas no coldre como se fossem canetas.
— Respira – ele disse.
— Eu respiro. Você que parece engasgado com a própria obsessão.
Matthias me olhou. Daqueles olhares que tiram o ar sem encostar um dedo.
— Você vai ficar ao meu lado o tempo inteiro. Sem provocação. Sem piadas. Sem sumir.
— Com medo que eu me perca? – sorri, colocando o salto no asfalto.
— Com medo que alguém me faça matar por você.
Arregalei um pouco os olhos. Ele saiu do carro antes que eu pudesse responder, e abriu a porta do meu lado. Como um cavalheiro. Como o diabo disfarçado.
— Se você se afastar de mim, pelo menos cinco passos, alguém vai te notar.
— E daí?
Ele se inclinou, a boca próxima demais do meu ouvido.
— E daí que eu vou quebrar alguém no meio no meio de um jantar com diplomatas internacionais.
Me arrepiei inteira. Mas fingi calma.
— Matthias… se você não quer que pensem que somos um casal, talvez parar de ameaçar o mundo em nome da minha honra seja um bom começo.
Ele segurou minha cintura. Firme. Quente. Territorial.
— Eu não me importo com o que eles pensam. Eu me importo com quem ousa olhar pra você como se eu não estivesse ao seu lado.
Parei.
— Você sabe que tudo isso soa como…
— Obsessão? – ele me cortou.
Assenti.
Ele deu um sorriso frio, sem dentes. Só sombra.
— Não é obsessão, Sophia. É instinto. Eu protejo o que está sobre minha responsabilidade.
— Eu não sou sua responsabilidade.
— É sim. Desde o momento em que seu pai saiu do país. Quer você queira, quer não.
***
Dentro da mansão, a elite do crime e do capital se misturava em vestidos caros, ternos de linho e taças de cristal. Tudo tão limpo que dava até medo. A tensão começou antes mesmo de eu abrir a boca. Os olhares. Todos em mim.
E Matthias ali. Ao meu lado. Ombro com ombro. Como um escudo de carne, luxo e ameaça pura. Um homem se aproximou. Cabelos grisalhos, terno azul petróleo, anel de rubi. O tipo que manda matar com um gole de whisky e um aceno sutil.
— Kane. Que surpresa. E essa…?
Antes que eu pudesse dizer um “oi”, Matthias respondeu:
— Minha responsabilidade.
O jeito que ele disse isso… Como se fosse código. Como se quisesse gritar “não toquem”. O homem sorriu.
— Ah… responsabilidade. Entendi.
Ele não entendeu porra nenhuma. E foi embora com um sorriso de quem já espalharia o boato antes da próxima rodada de champagne.
Me inclinei discretamente pra Matthias.
— “Responsabilidade”? Sério? Nem “acompanhante”? “Sócia”? “Seguidora do culto Kane”?
— Eu prefiro “propriedade”, mas achei que você surtaria.
— Sabe, com esse vocabulário, você devia abrir uma seita.
Ele virou o rosto pra mim. O olhar dele me prendeu pelo pescoço.
— Se eu abrir uma… você será a primeira a se ajoelhar.