A chuva caía como se quisesse lavar o mundo inteiro. As gotas batiam contra meu casaco encharcado, e cada passo pela calçada vazia ecoava como um sussurro incômodo no meu ouvido. Eram 23h37 quando girei a chave na porta de casa. Exausta, com o corpo pedindo socorro depois de mais de dezoito horas no hospital, tudo que eu queria era uma ducha quente e silêncio.
Mas o que encontrei foi o oposto.
Fechei a porta atrás de mim e deixei as chaves caírem na mesinha do corredor. Minha mochila escorregou do ombro. Ia direto para o chuveiro, mas então vi, um rastro escuro no chão. Gotas vermelhas. Não, não gotas. Marcas de Sague.
Meu coração deu um salto seco. Travei. A luz fraca da luminária da sala desenhava sombras no chão de madeira, e o silêncio da casa parecia mais pesado do que nunca. Eu deveria ter corrido. Deveria ter ligado para polícia. Mas minha mente treinada em emergência agiu antes de qualquer medo.
Meus olhos seguiram o rastro. As marcas iam do parapeito da janela até o centro da sala, como se alguém tivesse rastejado. A janela… estava aberta. Eu tinha esquecido a maldita janela aberta novamente.
O frio percorreu minha espinha.
E então eu o vi.
Caído no chão, com o corpo parcialmente apoiado contra o sofá, estava um homem. O sangue manchava sua camisa preta, e o tecido encharcado revelava dois ferimentos no abdômen. Tiros. Tiros bem colocados. Levei dois segundos para processar isso. O terceiro foi para notar os olhos dele.
Cinza metálico. Gélidos. Quase não-humanos. Eles se prenderam aos meus como se me conhecessem. Ou como se soubessem exatamente quem eu era.
— Fecha… a porta. — a voz dele saiu arranhada, mas ainda assim firme.
Travei onde estava. Meu cérebro gritava que aquilo era loucura. Que eu precisava correr. Mas algo nos olhos dele… não sei explicar. Era dor, sim. Mas também um orgulho inquebrável. Uma ameaça silenciosa.
— Você está ferido. Precisa de ajuda. — Minha voz saiu mais firme do que eu imaginava. Instintivamente, abaixei para analisar os ferimentos. Sangramento moderado, mas contínuo. Pressão provavelmente em queda. Um dos tiros podia ter atingido um órgão vital.
Ele me segurou pelo pulso antes que eu tocasse nele. A mão era forte, mesmo com a perda de sangue. Senti o calor do contato e, ao mesmo tempo, um arrepio me subiu pela pele.
— Só me escuta, doutora. Fecha a maldita porta. Agora.
Me levantei e fechei. Tranquei. Coloquei a corrente. A adrenalina queimava sob minha pele como uma segunda febre.
Voltei para ele e só então percebi quem era. Eu já tinha visto aquele rosto. Em jornais. Em manchetes. Em sussurros nos becos. Luca Moretti. O nome que até a máfia sussurrava com medo. O homem que eu nunca imaginei que pisaria na minha realidade.
E agora ele estava ali, sangrando na minha sala, encarando-me como se eu fosse a única coisa entre ele e a morte.
— Você é Sara Vasquez, certo? — ele murmurou, os olhos fixos nos meus.
Senti minha respiração travar. Como ele sabia meu nome?
— Como você…?
— Tive que ter certeza antes de entrar. — Ele tentou sorrir, mas o esforço o fez gemer. O sangue escorreu mais rápido pelo canto da camisa.
Fui até a cozinha e voltei com um kit de primeiros socorros. Ele podia ser o próprio demônio, mas eu era médica. Ou quase. E isso falava mais alto do que o medo.
— Vou ter que tirar sua camisa. — falei, me ajoelhando ao lado dele. Suas mãos, agora trêmulas, tentaram ajudar, mas eu já estava focada. O calor da pele dele era estranho, diferente.
— Diga-me o que fazer. — ele disse, com uma voz rouca e baixa. — Só não me deixe morrer aqui.
Levantei os olhos para os dele. Havia algo ali… um vazio antigo, uma guerra interna.
— Não vou deixar. — respondi. Nem sei por que disse aquilo com tanta convicção.
Talvez porque, naquele instante, eu soubesse que minha vida jamais voltaria a ser a mesma.
O sangue dele manchava meus lençóis limpos. A compressa improvisada já estava encharcada, e eu pressionava o ferimento como se minha força pudesse impedir a morte de atravessar a porta. Luca Moretti. O nome ainda ecoava na minha mente como um tambor de guerra.
— Você perdeu muito sangue. Se eu não suturar logo, não vai aguentar.
Ele assentiu, os olhos fixos nos meus com uma intensidade que parecia atravessar minha pele.
— Então faça.
Nunca pensei que ouviria essas palavras vindas do homem mais temido da máfia italiana, deitado no chão da minha sala. Mas ali estava ele, rendido… a mim.
Preparei o que tinha: linha cirúrgica, agulha, antisséptico, tudo do kit de emergência que mantinha por instinto. Sempre achei exagero da minha mãe. Agora, agradecia silenciosamente por sua paranoia.
— Isso vai doer. — avisei, mesmo sabendo que ele já devia estar acostumado com a dor.
— Já estou sentindo coisas piores. — murmurou, a mandíbula contraída.
Costurei o ferimento com o máximo de precisão que a tensão permitia. A cada ponto que dava, sentia o peso do que estava fazendo. O peso do nome dele. O peso das perguntas sem resposta.
Quando terminei, respirei fundo e me afastei um pouco, observando se ele apresentava sinais de choque. Mas ele parecia estável, por enquanto.
— Por que veio até mim? — perguntei. — Como sabe meu nome?
Ele se endireitou com esforço, apoiando as costas no sofá, o peito nu coberto de manchas secas de sangue. Os olhos cinzentos me fitaram como se medissem minha alma.
— Porque o mundo que você acha que conhece está prestes a desmoronar, Sara.
— Isso não responde nada.
Luca passou a mão pelo rosto, como se aquilo o ajudasse a manter o controle. Havia algo nele além da brutalidade. Uma dor crua, contida. E quando falou de novo, sua voz soou mais baixa, quase amarga.
— O nome do seu pai era Alejandro Vasquez, certo?
Meu coração disparou. Engoli seco.
— Sim…, Mas ele morreu há anos. Num acidente. — respondi, quase automaticamente, como se repetir a história oficial tornasse tudo mais fácil de suportar.
Luca balançou a cabeça devagar, com um meio sorriso torto.
— Não foi um acidente.
As palavras caíram como lâminas sobre mim.
— Como assim?
— Seu pai trabalhou com o meu. Eles eram praticamente irmãos. Mas seu pai… ele tentou sair. Quis proteger você e sua mãe. E por isso, foi silenciado.
Senti meu estômago virar.
— Está dizendo que meu pai… era um criminoso?
— Estou dizendo que ele era um homem bom no lugar errado. Como você.
Afastei-me, tentando processar, mas era como se o chão tivesse sumido sob meus pés. Minha mente gritava para não acreditar. Mas algo dentro de mim… sabia.
— Por que está me contando isso agora?
Luca então virou o rosto para a janela, os olhos ficando sombrios.
— Porque os mesmos homens que mataram seu pai… hoje, tentaram me matar. E agora que sabem que você existe… vão vir atrás de você também.
O frio me envolveu de novo. Mas dessa vez, não era da chuva. Era medo puro. Um tipo de medo que nunca senti, mesmo nos piores plantões da faculdade.— Você está dizendo que minha vida corre perigo— Estou dizendo que ela já mudou. — Ele me encarou de novo. — E se quiser viver… vai ter que confiar em mim.Dei um passo para trás.— Confiar em você? Um mafioso? Você invadiu minha casa sangrando, caiu no meu chão, me contou uma história absurda e agora quer que eu confie?Ele suspirou fundo, com um cansaço que parecia pesar mais do que as balas.— Eu poderia ter lhe deixado no escuro. Poderia ter morrido na rua ou invadido qualquer outro lugar. Mas vim aqui. Porque o sangue do seu pai corre em você. Porque ele salvou o meu pai inúmeras vezes. E agora… eu estou pagando essa dívida.A confusão se misturava com a adrenalina. Eu não sabia o que era verdade, mas sabia que aqueles olhos — frios e intensos — não mentiam.— O que você quer de mim? — perguntei, a voz baixa.Ele me olhou por um lon
O corpo estava ali, caído no meio da minha cozinha, com os olhos ainda abertos. O sangue se alastrava como uma sombra, manchando o chão de azulejos brancos. Eu tentava manter a mente funcionando, controlar a respiração, lembrar de algum protocolo de emergência…, mas nada na faculdade de medicina me preparou para isso.Nada no mundo poderia preparar alguém para isso.Luca ainda estava inconsciente, o corpo desfalecido no chão da sala, a respiração superficial e lenta. Seu rosto, apesar da palidez, ainda carregava a expressão endurecida de quem cresceu entre a violência. Mesmo inconsciente, ele parecia pronto para matar.— Droga… — murmurei, ajoelhando-me ao lado dele.Toquei seu pescoço, verificando os batimentos. Fracos. Mas constantes. A hemorragia havia recomeçado com o esforço e a troca de tiros. Pressionei novamente o curativo com força, tentando manter o sangue dentro do corpo dele enquanto minha mente girava em desespero.Então ele se mexeu.Os olhos se abriram devagar, pesados.
Por alguns segundos, tudo ficou em silêncio. Um silêncio tão absoluto que até o som do meu coração pareceu desacelerar. A pergunta dele ainda pairava no ar, como fumaça de pólvora depois de um tiro: “Vem comigo, ou fica e espera eles virem de novo?”Eu sou racional. Sempre fui. Treinada para pensar sob pressão, tomar decisões rápidas em meio ao caos. Mas aquilo… aquilo era diferente. Não era uma escolha clínica entre vida e morte. Era uma ruptura. Um abismo.E eu pulei.— Eu vou. — disse, sentindo a própria voz trêmula. — Só preciso de alguns minutos.Luca assentiu, exausto, e voltou a recostar-se no sofá, enquanto Marco me lançou um olhar breve — de aprovação, talvez, ou de pena. Não sei dizer.Corri para o meu quarto e puxei a mala que ficava guardada embaixo da cama. Ainda tinha poeira dos tempos em que eu imaginava que viajaria o mundo. Engraçado como a vida vira tudo do avesso num estalar de dedos. Agora, era fuga.Joguei a mala aberta em cima do colchão e comecei a pegar roupas
O quarto parecia mais uma cela de luxo do que um refúgio. Tudo ali era bonito, limpo, sofisticado... e absolutamente impessoal. As paredes tinham tons escuros e neutros, e a mobília era moderna demais para ter qualquer afeto. Como se ninguém tivesse vivido ali, mas tudo estivesse pronto para receber alguém em fuga.Eu.Sentei na beira da cama e soltei o ar que nem sabia que estava prendendo. Ainda estava com a roupa do plantão. O sangue nas mangas já tinha secado.De Luca, do invasor, talvez até meu. Nem sei mais. Cada batida do coração parecia um soco no peito, mas meu corpo ainda se mantinha em modo de alerta.De repente, alguém bateu à porta.— Doutora? — uma voz masculina, grave e educada.Me levantei com cuidado e destranquei a porta.O homem do outro lado era alto, de pele morena e olhos âmbar. Tinha o porte de um soldado, mas o rosto de alguém que já sofreu demais. Carregava uma bandeja com o que parecia ser comida.— Matteo pediu que eu trouxesse algo para você comer. E Luca q
POV LucaA chuva batia contra as enormes janelas da sala como uma mão inquieta, tentando entrar. Um prenúncio. Senti a umidade impregnada no ar, como se o próprio tempo pressentisse o que estava por vir.Abaixei a cabeça, apoiando os cotovelos na mesa pesada de carvalho escuro. Cada movimento fazia minhas costelas reclamarem, mas eu não me permitia demonstrar fraqueza. Não na frente dos meus homens. Não agora.Marco entrou sem bater. Como sempre fazia. Lealdade não precisava de convites formais.— Precisa descansar, chefe. — disse ele, de pé diante de mim, as mãos cruzadas atrás das costas.Ergui os olhos para ele. Marco parecia uma parede humana. Imóvel. Inquebrável. Alguém que eu teria ao meu lado até o fim — e que, se eu caísse, cairia junto.— Depois. — murmurei. — Primeiro, temos que falar sobre ela.— A garota?Assenti, olhando para o andar superior, onde sabia que Sara estava se preparando para dormir. Se é que conseguiria.— O que descobriu? — perguntei, puxando um cigarro da
LucaO silêncio depois da tempestade era quase mais perturbador que a própria chuva. A mansão, agora mergulhada em penumbra e quietude, respirava junto comigo — ou talvez apenas espiasse, esperando meu próximo passo.Subi as escadas devagar, ignorando a dor latejante nas costelas. Os curativos ainda estavam recentes, e o corpo gritava, mas minha mente estava longe dali. O peso de tudo que Marco dissera ainda me rondava, mas era outra coisa que me empurrava escada acima. Um impulso silencioso, primitivo.Ela.As portas do quarto de hóspedes estavam entreabertas. Me aproximei, os pés descalços deslizando pelo chão de madeira polida. Não queria acordá-la. Não ainda. Só queria... vê-la.Sara dormia encolhida no meio da cama king-size, como se o tamanho do mundo ao redor dela ainda fosse grande demais para confiar. Os cabelos estavam soltos, espalhados como uma nuvem escura no travesseiro branco. O rosto sereno, mas os dedos entrelaçados num aperto ansioso, como se até nos sonhos ela lutas
Acordei com um gosto metálico na boca e a sensação de estar flutuando entre dois mundos.O teto era alto, decorado com molduras em arabescos dourados. A cama onde eu estava deitada era grande demais, macia demais, luxuosa demais para qualquer realidade que eu conhecesse. As cobertas tinham um cheiro amadeirado, como se alguém tivesse acendido um charuto ali há poucas horas. E os lençóis… estavam limpos. Novos.Me sentei devagar, sentindo o corpo ainda dolorido da noite anterior. A lembrança veio como um soco seco: Luca sangrando no chão da minha sala, o homem invadindo meu apartamento, os tiros, o sangue, o medo, o calor do corpo dele entre meus braços. E depois… a fuga.Levantei da cama devagar. Meus pés tocaram o carpete felpudo, e a primeira coisa que fiz foi correr até a janela. Estava fechada, trancada por dentro, mas dava vista para um jardim extenso cercado por muros altos. Seguranças patrulhavam com fuzis no ombro como se aquilo fosse normal. Como se estivéssemos no meio de um