Depois de mais de dez horas de viagem, o cansaço começou a pesar. A estrada estava vazia, cortando a escuridão da noite. O farol do carro iluminava as linhas intermináveis da pista, e o único som era o ronco do motor e o som monótono da borracha deslizando sobre o asfalto.
Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda estava acelerada. Eu tentava não pensar, não sentir, apenas seguir em frente. Mas não importava quanto tempo passasse, as imagens do que eu deixava para trás ainda estavam nítidas na minha cabeça. A voz de minha mãe, cheia de incredulidade. O olhar de meu pai, cheio de preocupação. E Gabi, com aquele abraço apertado, tentando me manter ali, mesmo sabendo que não podia.
Eu olhei para o relógio do carro. Já era tarde, bem tarde. Mais de dez horas de estrada, e ainda faltavam pelo menos sete para chegar ao meu destino final. Eu sabia que não ia conseguir continuar dirigindo por tanto tempo sem parar, sem cair de sono.
Foi quando vi um pequeno letreiro à beira da estrada, iluminado fraco por uma lâmpada amarelada. "Hotel de Estrada - Pernoite." Uma opção simples, mas necessária naquele momento. Eu precisava de uma pausa. Um lugar onde eu pudesse descansar, desligar um pouco e voltar a me concentrar.
A rua estava deserta, sem mais nada além de árvores e campos escuros ao redor, mas o hotel parecia acolhedor, mesmo sendo simples. O letreiro piscava sem parar, quase pedindo para eu parar.
Estacionei o carro com cuidado, apagando o motor e saindo para esticar as pernas. A brisa da noite estava fresca e silenciosa, e ao longe, eu podia ouvir o som de grilos e o farfalhar das folhas. O lugar tinha aquele charme rústico de um hotel de beira de estrada: uma entrada simples, portas de madeira e janelas com cortinas brancas que tremulavam com o vento.
Entrei na recepção, que tinha um cheiro misto de madeira e café. O recepcionista, um homem de meia-idade com um sorriso simpático, me olhou por cima dos óculos e pediu meu nome.
— Só uma noite — disse, tentando manter o tom o mais leve possível. A última coisa que eu queria era que alguém me perguntasse mais do que eu estava disposta a responder.
Ele fez o registro rapidamente e me entregou a chave de um dos quartos. Eu assenti com um agradecimento e segui até o meu quarto. Era simples, como eu esperava: uma cama de casal com um edredom grosso, uma mesa de cabeceira com uma lâmpada e um pequeno banheiro. O lugar tinha o cheiro de um velho hotel, mas algo nele parecia... confortável. Pelo menos aqui eu poderia descansar, até que a estrada me chamasse novamente.
Deitei na cama com os olhos fixos no teto. A sensação de estar sozinha, de estar tão distante de tudo e de todos, me invadiu de uma maneira que não esperava. Meus pensamentos começaram a girar, mas não consegui segui-los. O cansaço tomou conta de mim de uma forma pesada, e antes que eu percebesse, os olhos se fecharam.
O peso da viagem, o peso da decisão, e o peso de tudo o que estava deixando para trás. Mas, por um momento, parecia que tudo o que eu precisava era de um pouco de descanso.
Eu sabia que, quando acordasse, ainda teria mais sete horas de viagem pela frente. Mas, por agora, o que eu mais precisava era de um pouco de paz.
O banho quente foi exatamente o que eu precisava. A água que caía sobre minha pele parecia derreter o cansaço, afastando a tensão que se acumulava nos meus ombros. O cheiro de sabonete e o vapor que subia deixaram a sensação de estar, finalmente, um pouco mais perto de estar em paz. Fechei os olhos por um instante, permitindo que o calor me envolvesse, como se fosse um pequeno abrigo temporário contra tudo o que eu estava deixando para trás.
Saí do banheiro, enrolada na toalha macia, e vesti o pijama confortável que havia trazido — uma camisa de algodão grande e um short leve. Não queria nada que me apertasse, nada que me lembrasse das pressões lá fora. Coloquei meu cabelo em um coque bagunçado e me sentei na cama, com um suspiro profundo, sentindo o lençol gelado tocar minha pele.
Olhei pela janela do quarto, que estava escura, sem a menor luz visível por perto. Era tão tranquilo ali, tão distante da minha rotina frenética e das expectativas que eu carregava. Talvez fosse isso que eu realmente precisava: um intervalo para pensar, para não ser quem todos achavam que eu deveria ser. Mas eu sabia que, eventualmente, o mundo me chamaria de volta. A vida não esperaria.
Peguei o telefone, procurando por algo simples e reconfortante. Resolvi pedir algo para o serviço de quarto, um jantar simples para não precisar sair. Não estava com fome, mas sabia que precisaria de algo no estômago antes de cair no sono. Pedi uma sopa quente e uma porção de pão com manteiga, o tipo de refeição que me faria sentir que estava cuidando de mim mesma, mesmo que por um momento.
Antes de deitar, abri o W******p e mandei uma mensagem rápida para Sofia e Leandro, meus amigos de longa data. Apesar da distância, ainda os considerava uma das minhas maiores fontes de apoio. Eu precisava que soubessem onde eu estava, que tivesse algum tipo de conexão, mesmo que virtual, antes de me perder novamente na estrada.
Mensagem para Sofia: Oi, amiga. Já estou em viagem, ainda faltam umas sete horas, mas parei para descansar. Acabei de chegar a um hotel simples aqui na beira da estrada. Tá tudo bem, só um pouco cansada. Vou te mandando notícias. Beijo grande.
Mensagem para Leandro: Le, cheguei em um hotel, já passei 10 horas na estrada. Daqui a pouco volto a viajar, mas resolvi descansar um pouco. Vou atualizando vocês, mas por enquanto estou tranquila. Só exausta. Depois te conto mais. Abraço!
Deixei o celular de lado e me ajeitei na cama. As cobertas estavam aconchegantes, e a maciez do travesseiro foi um alívio para minha cabeça, que estava cheia de pensamentos. Fechei os olhos, e o som da estrada distante se tornou uma música suave que me embalou lentamente.
Tudo o que eu precisava era de uma noite de descanso. Só mais uma noite antes de retomar a jornada.
A viagem até o asilo foi longa e cansativa, mas finalmente, ao chegar, uma sensação de alívio tomou conta de mim. O lugar era mais isolado do que eu imaginava. Ao longe, uma grande casa de dois andares, com jardins bem cuidados, parecia um refúgio tranquilo, algo que eu, até então, não tinha certeza de que merecia.O prédio em si tinha uma fachada antiga, com janelas grandes e cortinas de renda que balançavam suavemente com o vento. Havia uma aura de seriedade, mas também um certo charme desgastado, como se o tempo tivesse feito do asilo não só um abrigo para os idosos, mas também uma cápsula de memórias. Quando o carro parou em frente ao portão, pude sentir o cheiro da terra molhada, o que me fez relaxar um pouco. Um lugar silencioso, longe do barulho da cidade. Talvez fosse o começo de algo que eu precisava — um espaço onde pudesse, ao menos por um tempo, esquecer o caos.Fui recebida logo de cara por Ana, a enfermeira do local. Ela estava de uniforme azul, com o cabelo preso em um
Depois que Ana saiu, decidi que precisava deixar o quarto com um pouco mais da minha cara. Comecei a organizar minhas coisas com calma: dobrei as roupas e acomodei nas gavetas, pendurei algumas peças no pequeno armário de madeira clara e coloquei meu nécessaire no banheiro. Tirei um pequeno porta-retratos da mala, com uma foto antiga de mim, Sofia e Leandro em uma viagem, e deixei sobre a mesinha de cabeceira. Ver aquele sorriso congelado no tempo me deu uma pontada no peito, mas também me trouxe um conforto estranho. Era uma lembrança de que eu não estava completamente sozinha no mundo.Depois de arrumar tudo, fui até o banheiro e tomei um banho demorado. A água quente relaxava meus músculos depois das muitas horas de estrada. Quando saí, vesti uma calça jeans escura, uma blusa de manga azul clara e prendi o cabelo em um coque baixo. Nada demais, mas o suficiente para me sentir mais... eu mesma.Resolvi explorar um pouco o espaço dos funcionários, como Ana havia sugerido. Os corredor
O tempo passou rápido. O céu do lado de fora já estava completamente escuro quando escutei duas batidas leves na porta do meu quarto.— Marina? — era a voz de Ana, do outro lado.Abri a porta e a encontrei com a expressão calma de sempre, mas havia um certo peso no olhar, como se ela tivesse algo importante para dizer.— Boa noite — disse ela com um sorriso leve. — Espero que esteja se adaptando bem. Ricardo me disse que te conheceu, ele gostou de você!— Estou, sim. Dei uma volta pelo asilo. O lugar é lindo. Eu também gostei bastante do Ricardo. — sorri, sincera.Ana assentiu com um pequeno movimento de cabeça.— Fico feliz. Mas agora... — ela respirou fundo, voltando a me encarar. — O senhor Ramires quer falar com você. Ele pediu para que eu a levasse até o escritório dele.Fiquei surpresa com o convite repentino. Meu corpo se enrijeceu por instinto, embora eu não soubesse exatamente o motivo. Talvez fosse o mistério em torno desse homem que ninguém parecia conhecer muito bem, ou a
— Sente-se — disse, enfim, sua voz grave, firme, aveludada com um certo arranhado que parecia natural.Minha postura se encolheu um pouco. Por mais que eu estivesse arrumada, limpa, apresentável, uma insegurança surgiu do nada. Me senti feia. Não sabia por quê. Talvez fosse o contraste entre sua imponência e o modo como ele me avaliava, como se... algo estivesse fora do lugar.— Obrigado por vir — ele disse, por fim, cruzando os braços. — Pedi que viesse esta noite porque queria conhecê-la pessoalmente antes do início do trabalho.Tentei encontrar minha voz.— Claro. Ana me explicou que eu começo amanhã. Estou pronta.Ele assentiu com lentidão, como se cada gesto dele fosse calculado.— Sei do seu histórico, sua formação, seu registro como enfermeira. Mas quero deixar claro que este asilo funciona de maneira diferente. Tudo aqui é mantido com muita ordem. E essa ordem é... inegociável.Sua voz era baixa, mas havia uma firmeza fria em suas palavras.— Entendo — respondi, tentando não d
MarinaTem gente que começa uma nova vida com um recomeço bonito. Eu comecei com cinco caixas de papelão amassadas e duas malas quase explodindo.— Essa aqui fecha se eu sentar em cima, né? — resmunguei, empurrando com o joelho a tampa da caixa onde enfiei metade da minha vida. A outra metade tava espalhada entre roupas que não me serviam mais, livros que eu jurava reler um dia e um monte de cacareco sentimental que eu não tive coragem de jogar fora.Meu apartamento cheirava a café velho e desespero. A luz da manhã entrava pela persiana torta e iluminava o caos que era minha sala-cozinha-quarto — tudo junto, tudo apertadinho. E mesmo assim, era difícil dizer adeus.A campainha tocou. Claro que era ela. Só podia ser.— Já vai! — gritei, amarrando o cabelo num coque frouxo.Gabriela entrou antes mesmo que eu abrisse tudo. Irmã mais nova, cara de certinha, mas com aquele olhar que me julgava até quando eu respirava.— Você tem certeza disso, Marina? Sair assim... largar tudo pra trabalha
Com a ajuda da Gabi — e de muitas reclamações dela, claro — consegui enfiar todas as minhas cinco caixas e as duas malas no porta-malas do meu carro. A cada item que ela empurrava, fazia uma careta como se estivesse carregando pedras.— Isso aqui tá mais pesado que minha consciência depois de comer brigadeiro escondido — ela resmungou, tentando encaixar a última caixa.— Cuidado com essa, Gabi — avisei. — Tem livros de romance e meu vibrador. Ambos sagrados.Ela revirou os olhos, mas deu uma risada. Aquele som me lembrava que, apesar de tudo, ainda tínhamos algum tipo de normalidade.Entramos no carro e, no instante em que nos afastamos da rua, senti aquele nó no estômago. Não era o fim da minha vida, mas parecia o começo de algo que me faria repensar todas as minhas escolhas. O caminho até a casa dos nossos pais era curto, mas o peso dele parecia me engolir a cada quilômetro.— Vai contar agora? — Gabi perguntou, olhando para mim enquanto dirigia, seu tom mais sério do que o habitua
Quando chegou o momento de me despedir, o ar na casa ficou pesado. Meu pai, que sempre foi o mais calmo, estava parado na porta da sala, com os olhos marejados, mas sem coragem de se aproximar. Minha mãe, Helena, estava ao meu lado, com as mãos trêmulas e a expressão fechada, como se estivesse se esforçando para engolir algo muito amargo.— Então você vai mesmo? — Ela perguntou, a voz baixa, mas carregada de incredulidade. — Vai deixar tudo pra trás assim? Você tem certeza disso?Eu olhei para ela, sem saber o que responder. Já tinha me preparado para essa pergunta, mas ainda assim era difícil lidar com a maneira como ela me olhava. Como se estivesse se perguntando onde tinha falhado. A verdade era que ela não conseguia entender, e talvez nunca fosse entender.— Eu não estou fugindo, mãe — a minha voz falhou por um instante, mas eu me segurei. — Eu só... preciso de algo diferente. De um novo começo. Não consigo mais viver aqui. Não depois do que aconteceu.Ela me olhou com os olhos ch