Quando chegou o momento de me despedir, o ar na casa ficou pesado. Meu pai, que sempre foi o mais calmo, estava parado na porta da sala, com os olhos marejados, mas sem coragem de se aproximar. Minha mãe, Helena, estava ao meu lado, com as mãos trêmulas e a expressão fechada, como se estivesse se esforçando para engolir algo muito amargo.
— Então você vai mesmo? — Ela perguntou, a voz baixa, mas carregada de incredulidade. — Vai deixar tudo pra trás assim? Você tem certeza disso?
Eu olhei para ela, sem saber o que responder. Já tinha me preparado para essa pergunta, mas ainda assim era difícil lidar com a maneira como ela me olhava. Como se estivesse se perguntando onde tinha falhado. A verdade era que ela não conseguia entender, e talvez nunca fosse entender.
— Eu não estou fugindo, mãe — a minha voz falhou por um instante, mas eu me segurei. — Eu só... preciso de algo diferente. De um novo começo. Não consigo mais viver aqui. Não depois do que aconteceu.
Ela me olhou com os olhos cheios de lágrimas, mas sem demonstrar mais que isso. Não estava pronta para chorar ali, não na minha frente. Queria que fosse diferente, mas sabia que não podia esperar outra reação. A mãe que eu conhecia, a mulher forte e controladora, não sabia o que fazer com a filha que estava indo embora, sem pedir permissão, sem pedir desculpas.
— E o que vai fazer no asilo, Marina? Você não tem ideia do que está entrando, não sabe o que está por vir! — Ela gritou, seu tom mais alto, mas a dor estava ali, misturada à frustração. — E o seu futuro? O que vai ser da sua vida, filha? Você vai ficar lá sozinha, em um lugar com velhos, como se fosse uma punição?
Meu peito apertou, e por um momento eu quase cedi à pressão, quase disse que voltaria, que não queria fazer aquilo. Mas, então, eu me lembrei de tudo o que passei, de tudo o que sentia, e a certeza voltou a crescer dentro de mim.
— Mãe, eu não posso mais ficar aqui. Eu preciso sair, preciso recomeçar. E eu sei que não vai ser fácil, mas é o que eu preciso. Não posso continuar aqui, presa, esperando que as coisas mudem sozinhas. Não posso.
Minha mãe ficou em silêncio por alguns segundos, tentando encontrar as palavras certas, mas não conseguiu. Ela me olhou com aquele olhar dolorido, tentando entender minha decisão, mas sabia que não ia mudar minha mente. Eu já estava decidida.
Foi quando meu pai, que estava de pé, quieto, ao fundo, se aproximou. Ele me olhou, com os olhos mais suaves, e me abraçou sem dizer nada. Seu abraço foi tão reconfortante quanto eu precisava, silencioso, mas carregado de uma compreensão que minha mãe nunca soubera demonstrar. Ele me apertou contra ele com força, como se tentasse me guardar dentro dele.
— Vai dar tudo certo, filha — ele murmurou, a voz rouca, mas cheia de apoio. Eu sabia que ele estava com medo, mas ao menos ele estava me apoiando, mesmo que não fosse fácil para ele. Ele sabia que essa era a minha escolha, e, embora tenha medo, ele sabia que era o que eu precisava.
Eu me afastei um pouco dele, enxugando as lágrimas que começavam a cair.
— Eu te amo, pai — disse, com a voz embargada.
— Eu também te amo, filha — ele sorriu fraco, mas com os olhos sinceros.
Gabi estava ali, parada na porta, observando a cena. Ela não disse nada. Sabia que eu precisava disso, que eu precisava desse momento. Ela não questionou, não tentou me convencer a ficar. Gabi sabia que, de um jeito torto, isso fazia parte da minha jornada.
A última coisa que eu fiz antes de sair foi olhar para minha mãe. Ela estava ali, parada, com as mãos no peito, observando-me com um olhar que misturava dor e raiva, mas também uma espécie de desespero silencioso. Ela queria gritar, queria me impedir, mas não fez nada disso. Ela apenas ficou ali, parada, assistindo-me partir.
— Até logo, mãe — falei, minha voz quase inaudível.
Ela não respondeu. Apenas me olhou, com os olhos cheios de lágrimas, e balançou a cabeça, como se estivesse se convencendo de que eu voltaria. Mas não voltaria.
Saí pela porta, e Gabi me seguiu, sem dizer uma palavra. Ela me olhou mais uma vez, e então, sem mais nada, fomos para o carro.
Eu estava prestes a partir, mas a despedida parecia estar acontecendo em câmera lenta, como se o tempo quisesse me forçar a reconsiderar.
Gabi estava parada ao meu lado, em silêncio, e eu pude ver o quanto ela estava dividida. Não dizia nada, mas a maneira como me olhava mostrava que ela também estava absorvendo cada pedacinho daquela despedida. Como se estivéssemos passando por algo que não tínhamos realmente compreendido até aquele momento.
Eu me virei para ela, tentando sorrir, mas o esforço era em vão. Minhas lágrimas começavam a cair novamente, e não havia como segurá-las.
— Vai dar tudo certo, né? — Gabi finalmente disse, a voz embargada, tentando fazer de tudo para não chorar. Mas ela não conseguiu. As lágrimas começaram a brilhar em seus olhos também.
Eu tentei enxugar o rosto, mas as palavras ficaram presas na garganta. Ela estava certa. Nada mais seria como antes. Era um fim. Mas também era um novo começo.
— Eu não sei... — respondi, minha voz quebrando. — Eu só sei que não posso mais ficar aqui, Gabi. Preciso disso. Preciso tentar.
Gabi me abraçou, um abraço apertado, como se estivesse tentando me manter ali, como se não quisesse me ver partir. Eu pude sentir o calor do corpo dela, o cheiro familiar, e por um instante, desejei que ela fosse comigo, que tudo fosse mais simples. Mas não era.
— Vai com calma, ok? Não se esquece de nós. — Ela sussurrou, suas palavras mais pesadas do que qualquer frase que ela pudesse ter dito antes.
Eu me afastei dela, olhando para o carro. Meus olhos estavam nublados, e o coração apertado. Respirei fundo e entrei no carro. Não olhei para trás. Não consegui. Não sabia se poderia suportar ver minha mãe ou meu pai naquele momento. O futuro estava diante de mim, mas o passado ainda me seguia, como uma sombra.
Gabi ficou ali, parada, observando-me entrar no carro, e foi a última imagem que eu tive antes de dar a partida. Ela levantou a mão em despedida, e eu respondi com um aceno, o máximo que consegui fazer.
O som do motor ligado ecoou por um momento, e então, com um último suspiro, coloquei o carro em movimento. Eu estava indo. Não sabia exatamente para onde, mas sabia que não podia mais continuar onde estava.
As ruas que eu já conhecia passaram pela janela, mas parecia que cada uma delas me afastava mais e mais da vida que eu deixava para trás. E, enquanto o carro seguia seu caminho, o peso da decisão caiu sobre mim. Eu estava deixando tudo para trás.
Depois de mais de dez horas de viagem, o cansaço começou a pesar. A estrada estava vazia, cortando a escuridão da noite. O farol do carro iluminava as linhas intermináveis da pista, e o único som era o ronco do motor e o som monótono da borracha deslizando sobre o asfalto.Meu corpo estava exausto, mas minha mente ainda estava acelerada. Eu tentava não pensar, não sentir, apenas seguir em frente. Mas não importava quanto tempo passasse, as imagens do que eu deixava para trás ainda estavam nítidas na minha cabeça. A voz de minha mãe, cheia de incredulidade. O olhar de meu pai, cheio de preocupação. E Gabi, com aquele abraço apertado, tentando me manter ali, mesmo sabendo que não podia.Eu olhei para o relógio do carro. Já era tarde, bem tarde. Mais de dez horas de estrada, e ainda faltavam pelo menos sete para chegar ao meu destino final. Eu sabia que não ia conseguir continuar dirigindo por tanto tempo sem parar, sem cair de sono.Foi quando vi um pequeno letreiro à beira da estrada,
A viagem até o asilo foi longa e cansativa, mas finalmente, ao chegar, uma sensação de alívio tomou conta de mim. O lugar era mais isolado do que eu imaginava. Ao longe, uma grande casa de dois andares, com jardins bem cuidados, parecia um refúgio tranquilo, algo que eu, até então, não tinha certeza de que merecia.O prédio em si tinha uma fachada antiga, com janelas grandes e cortinas de renda que balançavam suavemente com o vento. Havia uma aura de seriedade, mas também um certo charme desgastado, como se o tempo tivesse feito do asilo não só um abrigo para os idosos, mas também uma cápsula de memórias. Quando o carro parou em frente ao portão, pude sentir o cheiro da terra molhada, o que me fez relaxar um pouco. Um lugar silencioso, longe do barulho da cidade. Talvez fosse o começo de algo que eu precisava — um espaço onde pudesse, ao menos por um tempo, esquecer o caos.Fui recebida logo de cara por Ana, a enfermeira do local. Ela estava de uniforme azul, com o cabelo preso em um
Depois que Ana saiu, decidi que precisava deixar o quarto com um pouco mais da minha cara. Comecei a organizar minhas coisas com calma: dobrei as roupas e acomodei nas gavetas, pendurei algumas peças no pequeno armário de madeira clara e coloquei meu nécessaire no banheiro. Tirei um pequeno porta-retratos da mala, com uma foto antiga de mim, Sofia e Leandro em uma viagem, e deixei sobre a mesinha de cabeceira. Ver aquele sorriso congelado no tempo me deu uma pontada no peito, mas também me trouxe um conforto estranho. Era uma lembrança de que eu não estava completamente sozinha no mundo.Depois de arrumar tudo, fui até o banheiro e tomei um banho demorado. A água quente relaxava meus músculos depois das muitas horas de estrada. Quando saí, vesti uma calça jeans escura, uma blusa de manga azul clara e prendi o cabelo em um coque baixo. Nada demais, mas o suficiente para me sentir mais... eu mesma.Resolvi explorar um pouco o espaço dos funcionários, como Ana havia sugerido. Os corredor
O tempo passou rápido. O céu do lado de fora já estava completamente escuro quando escutei duas batidas leves na porta do meu quarto.— Marina? — era a voz de Ana, do outro lado.Abri a porta e a encontrei com a expressão calma de sempre, mas havia um certo peso no olhar, como se ela tivesse algo importante para dizer.— Boa noite — disse ela com um sorriso leve. — Espero que esteja se adaptando bem. Ricardo me disse que te conheceu, ele gostou de você!— Estou, sim. Dei uma volta pelo asilo. O lugar é lindo. Eu também gostei bastante do Ricardo. — sorri, sincera.Ana assentiu com um pequeno movimento de cabeça.— Fico feliz. Mas agora... — ela respirou fundo, voltando a me encarar. — O senhor Ramires quer falar com você. Ele pediu para que eu a levasse até o escritório dele.Fiquei surpresa com o convite repentino. Meu corpo se enrijeceu por instinto, embora eu não soubesse exatamente o motivo. Talvez fosse o mistério em torno desse homem que ninguém parecia conhecer muito bem, ou a
— Sente-se — disse, enfim, sua voz grave, firme, aveludada com um certo arranhado que parecia natural.Minha postura se encolheu um pouco. Por mais que eu estivesse arrumada, limpa, apresentável, uma insegurança surgiu do nada. Me senti feia. Não sabia por quê. Talvez fosse o contraste entre sua imponência e o modo como ele me avaliava, como se... algo estivesse fora do lugar.— Obrigado por vir — ele disse, por fim, cruzando os braços. — Pedi que viesse esta noite porque queria conhecê-la pessoalmente antes do início do trabalho.Tentei encontrar minha voz.— Claro. Ana me explicou que eu começo amanhã. Estou pronta.Ele assentiu com lentidão, como se cada gesto dele fosse calculado.— Sei do seu histórico, sua formação, seu registro como enfermeira. Mas quero deixar claro que este asilo funciona de maneira diferente. Tudo aqui é mantido com muita ordem. E essa ordem é... inegociável.Sua voz era baixa, mas havia uma firmeza fria em suas palavras.— Entendo — respondi, tentando não d
MarinaTem gente que começa uma nova vida com um recomeço bonito. Eu comecei com cinco caixas de papelão amassadas e duas malas quase explodindo.— Essa aqui fecha se eu sentar em cima, né? — resmunguei, empurrando com o joelho a tampa da caixa onde enfiei metade da minha vida. A outra metade tava espalhada entre roupas que não me serviam mais, livros que eu jurava reler um dia e um monte de cacareco sentimental que eu não tive coragem de jogar fora.Meu apartamento cheirava a café velho e desespero. A luz da manhã entrava pela persiana torta e iluminava o caos que era minha sala-cozinha-quarto — tudo junto, tudo apertadinho. E mesmo assim, era difícil dizer adeus.A campainha tocou. Claro que era ela. Só podia ser.— Já vai! — gritei, amarrando o cabelo num coque frouxo.Gabriela entrou antes mesmo que eu abrisse tudo. Irmã mais nova, cara de certinha, mas com aquele olhar que me julgava até quando eu respirava.— Você tem certeza disso, Marina? Sair assim... largar tudo pra trabalha
Com a ajuda da Gabi — e de muitas reclamações dela, claro — consegui enfiar todas as minhas cinco caixas e as duas malas no porta-malas do meu carro. A cada item que ela empurrava, fazia uma careta como se estivesse carregando pedras.— Isso aqui tá mais pesado que minha consciência depois de comer brigadeiro escondido — ela resmungou, tentando encaixar a última caixa.— Cuidado com essa, Gabi — avisei. — Tem livros de romance e meu vibrador. Ambos sagrados.Ela revirou os olhos, mas deu uma risada. Aquele som me lembrava que, apesar de tudo, ainda tínhamos algum tipo de normalidade.Entramos no carro e, no instante em que nos afastamos da rua, senti aquele nó no estômago. Não era o fim da minha vida, mas parecia o começo de algo que me faria repensar todas as minhas escolhas. O caminho até a casa dos nossos pais era curto, mas o peso dele parecia me engolir a cada quilômetro.— Vai contar agora? — Gabi perguntou, olhando para mim enquanto dirigia, seu tom mais sério do que o habitua