SILÊNCIO COMPRADO
SILÊNCIO COMPRADO
Por: Kell velloso
PRÓLOGO

                                            ECO DO SILÊNCIO

O som veio primeiro. Um barulho que nunca mais saiu da minha cabeça.

Não foi o choque, a batida em si. Isso veio depois, como um tremor distante. Foi o ruído que veio antes. Um gemido gutural, profundo, de metal se retorcendo, de vidro estilhaçando em câmera lenta dentro da minha própria mente. Um rangido longo, agonizante, que se fundiu para sempre com a última palavra que a Beatriz disse. Eu sinto esse som até hoje, latejando nos meus ouvidos nos momentos mais quietos.

Não a ouvi direito naquele momento. Minha cabeça estava longe, presa no fechamento trimestral, naqueles números teimosos que não fechavam, naquela pressão silenciosa e constante que o Viktor exercia sobre o conselho. O telefone no meu ouvido era só um canal para a minha própria frustração, que transbordava e respingava nela.

— Isso não é justo, Beatriz — minha voz soou cansada, irritada. — Não posso simplesmente sair agora. A reunião é crucial.

A voz dela, que normalmente era um riacho calmo, um alívio, veio afiada e cortante. — Crucial? Mais crucial do que a sua filha chorando porque o pai esqueceu de novo da peça da escola? Ela era uma árvore, Dante! Uma maldita árvore de papelão e glitter! Você tinha prometido.

— E eu vou estar na próxima. — A frase saiu oca, sem ar. Um clichê desgastado que eu mesmo não acreditava. — Manda uma mensagem para a professora, explica que houve um imprevisto. Eles entendem.

— O imprevisto é você! — A voz dela quebrou, mas não era choro. Era raiva pura, cristalina, a raiva de anos de ausência. — O imprevisto é a sua falta constante. A Melissa precisa de você. Eu preciso de você. Não do seu dinheiro, não do seu título de CEO. De você.

Fechei os olhos com força, esfregando a ponte do nariz. Sentia a dor de cabeça começando a latejar, uma pressão familiar atrás dos olhos. — Não comece com isso, Beatriz. Por favor, não hoje. Você sabe a pressão que estou sob. Meu pai construiu essa empresa do nada, e eu…

— E você está deixando que ela te consuma. Está deixando que eles te consumam. — O ‘eles’ era óbvio, dolorosamente claro: Viktor e o séquito de puxa-sacos dele. — Você está diferente, Dante. Algo está muito errado. Eu li aquele relatório… aquele que você deixou cair na sala de estar… sobre os lotes do Lúmen.

Um frio súbito, um choque de gelo, percorreu minha espinha inteira. — Você leu o quê? Beatriz, isso… isso não é assunto para… você não deveria ter…

— Não deveria o quê? Não deveria me preocupar? Não deveria achar estranho sumiços de medicamentos de alto custo dos registros? Não deveria desconfiar que o novo ‘produto milagroso’ de vocês tem dados bons demais, perfeitos demais para ser verdade?

— Pare. — A ordem saiu mais áspera, mais dura do que eu pretendia. — Pare com isso agora. Você não entende. É complexo. É perigoso ficar especulando sobre essas coisas.

Houve um silêncio do outro lado da linha. Um silêncio pesado, denso, carregado de algo terrível que ela havia descoberto. Quando ela falou de novo, a voz era um sussurro gelado, uma revelação fatal.

— Não é especulação, Dante. Eu encontrei… encontrei umas correspondências. No seu laptop antigo, aquele que você deixou no escritório em casa. O Viktor… ele não é só ambicioso. Ele é perigoso. De verdade. Eu… eu estou com medo.

Meu coração parou. Simplesmente parou de bater por um instante eterno, e então disparou, descontrolado, batendo contra minhas costelas. O escritório ao meu redor, o sofá de couro frio, a vista panorâmica de Nova York, tudo sumiu. Desapareceu. Só existia aquele fio de voz, carregando um perigo real, tangível, para dentro da minha vida. — O que foi que você encontrou? Beatriz, fala comigo. Me diz o que você viu!

— Não pelo telefone. — A decisão na voz dela era de aço, inflexível. — Estou indo aí. Agora mesmo. Precisamos conversar. Precisamos decidir o que fazer com isso. Pelo bem da empresa. Pelo bem da nossa família.

— Não, espera! Fica aí! Eu vou pra casa, eu… — Mas o medo que me apertou não era só por ela. Era por mim, pelo escândalo monumental, pela empresa, por tudo que desabaria. A hesitação durou um segundo. Um segundo fatal.

— Já estou no carro. — O som do motor de partida ecoou pelo viva-voz, um ruído comum que soou como uma sentença. — Chego em vinte minutos. Fica aí. E, Dante?

— O quê? — minha voz saiu rouca.

A voz dela suavizou, por um breve instante, voltando a ser a mulher que eu amara, a voz que cantarolava na cozinha. — Desta vez, escuta o que eu tenho a dizer. Por favor.

A ligação caiu.

Fiquei paralisado. O telefone, agora mudo, um peso morto pressionado contra o meu rosto. O relatório do Lúmen. Os desaparecimentos. As suspeitas que eu sempre abafei, em nome de uma lealdade doente, de um legado envenenado. A Beatriz tinha furado a bolha. Ela sabia. Sabia de tudo. E estava vindo me confrontar, trazendo as provas nas mãos.

O pânico subiu pela minha garganta, um gosto amargo e nauseante. Eu devia ir ao encontro dela. Devia impedi-la de vir, acalmá-la, explicar… explicar o quê? Mas meus pés pareciam pregados no carpete caro. O peso de uma decisão colossal – proteger minha esposa ou proteger o mundo frágil, podre e corrupto que eu ajudava a sustentar – me esmagava, me deixava sem ar.

Os minutos se arrastaram. Cada minuto foi uma pequena eternidade de culpa e indecisão, um martírio em câmera lenta.

Então, meu celular pessoal tocou. Um número desconhecido. Meu estômago se contraiu num nó de terror.

— Senhor Lobo? — Uma voz masculina, profissional, mas com um tremor subjacente, uma faísca de pena.

— Sim? Sou eu.

— Aqui é o oficial Ramos, do 12º DP. Houve um… um incidente. Na avenida Marginal. Um Chevrolet Prata, placa… o veículo pertence a uma Beatriz Lobo. Ela consta como sua esposa no registro.

O mundo desabou. Simplesmente desabou. O som do telefone caindo no chão foi completamente abafado pelo zumbido ensurdecedor, alto, estridente, que explodiu dentro dos meus ouvidos. Não ouvi os detalhes que vieram depois. “Colisão frontal”… “caminhão”… “no instante”… “não sofreu”… Foram só palavras vazias, sem significado.

Só consegui formar uma pergunta, com uma voz rouca, rasgada, que parecia vir das profundezas da minha garganta: — Ela… ela falou alguma coisa?

Uma pausa do outro lado. Longa, torturante. — Os paramédicos relataram que a senhora estava consciente por breves instantes no local. Ela repetia uma palavra, senhor.

— Qual palavra? — a pergunta saiu um sopro, quase inaudível.

— Dizia ‘Lúmen’. ‘Cuidado com o Lúmen’. Não fez sentido para a equipe. Faz algum sentido para o senhor?

Não respondi. Desliguei o telefone. O nome do medicamento-fantasma, a fonte de toda a podridão que eu temia, ecoou na sala silenciosa e vazia, agora misturado para sempre, inseparável, do último suspiro da minha esposa. Eu não a tinha ouvido em vida. Só tinha ouvido o eco da raiva dela, o ruído vazio da discussão. E agora, o silêncio que veio depois era o mais alto, o mais ensurdecedor de todos, carregado de uma verdade que meu cérebro ainda se recusava a compreender totalmente: A Beatriz não morreu por causa de uma discussão.

Morreu por causa de um segredo. Um segredo que eu sabia, que ela descobriu, e que alguém matou para proteger.

E o último aviso dela, sussurrado no meio da dor e do desespero, era a única coisa que eu ouviria com clareza absoluta dali em diante. Era a única palavra que importava.

O barulho da discussão sumiu. No lugar dele, instalou-se um silêncio culpado, pesado como uma lápide, frio como uma cova. E no centro absoluto daquele silêncio, plantada como uma semente venenosa que nunca mais pararia de crescer, estava a palavra que ia mudar tudo, que já estava mudando tudo dentro de mim: Lúmen.

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