TRÊS MESES ANTES
O som dos meus saltos ecoava pelo corredor do RH da Winter Enterprises como um lembrete insistente de que eu não pertencia àquele lugar. Era tudo muito limpo, muito organizado, muito caro, e eu era uma fraude vestida de brechó.
Segurei a pasta contra o peito como se ela pudesse proteger meu coração da verdade impressa ali dentro: um currículo que era, basicamente, uma história de ficção.
A luz que entrava pelas janelas gigantescas do edifício não conseguia esquentar o frio que morava dentro de mim. Talvez fosse a temperatura gelada do ar-condicionado. Ou talvez fosse o nome “Winter” gravado em letras metálicas no saguão que me dava calafrios.
Eu estava prestes a ser entrevistada para ser secretária pessoal dele. E tudo o que tinha era um diploma falsificado, um histórico inventado, e uma dívida impagável herdada do meu falecido pai falido e viciado em jogos.
A recepcionista sorriu.
— Senhorita Harper? O senhor Collins a aguarda.
— Obrigada. — respondi com um sorriso treinado, o mesmo que praticara por horas diante do espelho.
Entrei na sala e encontrei o entrevistador: um homem magro, cabelo grisalho, postura ereta e óculos de armação grossa. Ele não sorriu.
— Sente-se, por favor.
Me acomodei, tentando manter a coluna reta e as mãos firmes sobre o colo. Ele começou a folhear minha pasta.
— Formada pela NYU, administração com foco em logística… — murmurou, os olhos deslizando sobre o papel. — Trabalhou na Elridge Group?
— Sim, senhor. Dois anos como assistente executiva.
— Direta ao vice-presidente?
— Exato. Eu lidava com relatórios financeiros, contratos e a agenda internacional. Uma experiência desafiadora, mas enriquecedora.
Ele assentiu.
— E o seu TCC? Qual foi o tema?
— Otimização de processos em grandes corporações. Eu me baseei em estudos de caso reais, para dar mais aplicabilidade prática à teoria. — falei, no automático.
— Interessante. E… por gentileza, senhorita Harper. — ele se recostou na cadeira — olhe diretamente para essa câmera, atrás de mim.
Eu pisquei.
— A câmera?
— Sim. — disse ele, apontando com a cabeça para uma pequena lente, quase invisível, acima da estante. — Estamos testando um novo protocolo de análise comportamental em entrevistas de alto nível. Pode continuar olhando enquanto responde.
Meu corpo congelou. Meu coração disparou.
Algo naquela lente escura me dava a estranha sensação de estar... sendo julgada. Não pelo Collins. Por outra pessoa.
Respirei fundo, com os olhos fixos na câmera.
— A metodologia que usei foi… — comecei, mas as palavras tropeçaram. — Foi… uma análise comparativa entre… — Merda. A boca ficou seca. Eu não sabia o que dizer. Tentei continuar. — Entre… empresas de grande porte e... e seus métodos logísticos.
O silêncio de Collins era ensurdecedor. Ele me observava com atenção. Não com reprovação, mas com um ar analítico.
Me senti nua.
Droga, Stella. Você treinou isso.
— Senhor Collins… — engoli em seco — eu… eu menti. Não terminei a faculdade. Eu parei no terceiro semestre. Meu pai morreu e me deixou... uma montanha de dívidas. Eu precisava de um emprego. Um que pagasse bem. Eu fiz o que pude. Eu sei que isso deve custar a vaga, mas… não consegui seguir com a mentira.
Uma pausa longa.
Ele apenas me observou. Depois, discretamente, levou a mão ao ouvido, ajustando o pequeno ponto eletrônico em sua orelha. Quem está do outro lado?
— Senhorita Harper. — disse ele, voltando o olhar para mim. — Obrigado pela sinceridade. — Fechei os olhos, sentindo a derrota me envolver. Era isso. Fim da linha. — O cargo é seu.
Meu queixo caiu um pouco.
— O quê?
— Comece na próxima segunda-feira. Você será apresentada diretamente ao senhor Winter.
Não consegui responder. Apenas assenti.
Saí daquela sala atordoada. Algo estava errado. A mentira foi descoberta. E ainda assim… ele me contratou?
Por quê?
[...]
— Claro, senhor Winter. O senhor manda, senhor Winter… — murmurei para mim mesma, empilhando as pastas na mesa do meu novo chefe.
A sala dele parecia um mausoléu de vidro e concreto. Fria. Perfeita. Sem uma única folha fora do lugar. Como se qualquer traço de humanidade tivesse sido propositalmente apagado.
— Deve dormir em uma cápsula criogênica e se recarregar via USB. — resmunguei, bufando. — “Revise a planilha, senhorita Harper” "Traga minha agenda, senhorita Harper" Nem um “bom dia”?
Me virei para guardar uma pasta no armário, ainda falando sozinha.
— Aposto que se eu disser “Hey, Siri”, ele responde. Robô Winter, modelo 001 se apresentando para…
— Robô?
O sangue desapareceu do meu rosto.
Virei lentamente.
Damian Winter estava parado na porta.
Os braços cruzados, o olhar fixo em mim com uma sobrancelha arqueada. Nenhuma emoção visível e com certeza, nenhuma sombra de humor.
Me senti presa naqueles olhos castanhos penetrantes, com um brilho quase dourado quando a luz da janela batia neles de um certo jeito. Cabelo castanho-claro com mechas que ganhavam tons de mel sob a iluminação. Alto, musculoso e sempre de terno. Ele era bonito de um jeito injusto, sua personalidade e falta de expressão o faziam parecer uma escultura feita para intimidar, não para admirar.
Meu coração batia tão forte que quase cobria o silêncio constrangedor entre nós.
— Você… me chamou de robô?