Londres nunca me pareceu tão fria quanto hoje.
Não por causa da temperatura lá fora, que até está mais amena do que de costume, mas por dentro. Pela bagunça silenciosa que me acompanha desde que voltei pra casa do meu pai depois da aula.
Ele estava deitado no sofá, com o rosto pálido e as mãos trêmulas, segurando o controle remoto como se aquilo pudesse distrair a dor que ele não admite sentir. Eu trouxe um pouco de chá, mas ele não tomou. Disse que estava cansado. E eu entendi.
Talvez mais do que gostaria.
Há semanas ele está piorando. Disfarça, claro. Meu pai sempre foi desses homens que acreditam que doença é fraqueza, que sofrer é um luxo. Mas eu vejo nos olhos dele. O cansaço. O medo. A fragilidade que ele tenta esconder por trás de piadas ruins e notícias da Globo.
Pior do que isso é não ter minha mãe pra dividir esse peso.
Ela morreu há pouco mais de um ano. Câncer. Aquele tipo que te leva rápido, sem tempo pra barganhar. E foi a dor dela que me fez me reaproximar do meu pai — depois de anos de distância, acusações, silêncios longos demais.
No fim, ele foi quem me ajudou a conseguir a bolsa pra vir estudar gastronomia aqui. E eu prometi que faria tudo valer a pena. Mesmo quando o coração doía. Mesmo quando perdi o namorado com quem achava que passaria a vida.
Ele me disse que precisava de tempo. Tradução: tinha outra.
É por isso que estou aqui, às oito e meia da noite, no meu terceiro turno da semana no The Hollow Oak. O pub é movimentado nas sextas — e hoje não é diferente. Gente demais, risos altos, música boa e copos se acumulando no balcão como se houvesse um prêmio no fim da noite.
— Manu! — O gerente me chama. — Mesa sete pediu mais duas rodadas. Apressa o passo!
— Já tô indo — respondo, puxando a bandeja com as bebidas.
Sorrio para os clientes, mesmo sem vontade. Atendo pedidos. Anoto gorjetas. Troco piadas com os bêbados simpáticos e ignoro os comentários dos inconvenientes. Faz parte.
É quando volto ao balcão pra pegar mais gelo que o vejo pela primeira vez.
Ele está vindo em minha direção, alto, elegante, com uma postura que denuncia algum tipo de poder — e a camisa social clara dobrada nos antebraços revela músculos discretos, mas marcados. Ele tem a barba por fazer e o cabelo loiro ondulado, um pouco bagunçado como se tivesse passado a mão várias vezes.
Mas é nos olhos dele que eu paro. São dourados.
Ele se aproxima e pede uma cerveja amarga. Dou meu melhor sorriso profissional.
— Temos uma IPA que faz isso bem — digo, e sirvo sem pestanejar.
— Você parece saber do que está falando.
— Trabalhar aqui há dois anos me deu um diploma informal em ressacas — brinco, e ele sorri.
É um sorriso pequeno, tímido, como se ele não sorrisse com frequência. E ainda assim, é bonito. Um pouco triste. Mas bonito.
— Parece que vim ao lugar certo.
Conversamos por alguns segundos. Trocamos frases sobre o clima — algo tão britânico que chega a ser ridículo — e ele comenta sobre o sol suspeito que apareceu hoje. Respondo que também fico desconfiada quando o céu decide ser gentil. Ele ri, e o som é rouco, baixo, quase íntimo.
Mas logo um dos amigos dele grita, zombando da nossa conversa, e ele volta pra mesa. Ainda assim, noto que vira o rosto para me olhar mais uma vez antes de sentar.
E eu? Eu volto ao trabalho como se nada tivesse acontecido.
Mas algo aconteceu.
O pub vai ficando mais cheio, mais barulhento, mais caótico. Os clientes já estão claramente mais bêbados. Uma mulher vomitou atrás do sofá da área externa. Dois caras discutiram por causa de uma aposta no bilhar. Típica sexta.
Meu turno terminou há vinte minutos, mas fiquei pra ajudar. E também... pra ver se o loiro dos olhos de mel voltava ao balcão.
Não voltou.
Quando finalmente tiro o avental e me preparo pra ir embora, vou ao banheiro feminino lavar o rosto. No caminho, escuto um som abafado vindo do banheiro masculino. Algo entre um soluço e o som de alguém... vomitando.
Bato levemente na porta.
— Oi? Tá tudo bem aí?
Nenhuma resposta.
Empurro a porta devagar. Lá está ele. O homem da camisa social dobrada, ajoelhado no chão, com as mãos nos joelhos e a cabeça tombada pra frente. O cheiro não é dos melhores. Mas o que me preocupa é o estado dele.
— Ei... você tá bem?
Ele ergue os olhos devagar, como se estivesse emergindo de um lugar profundo. Os olhos estão vidrados, vermelhos.
— Emma... — ele balbucia, quase um sussurro. — O bebê... eu vi ela... eu...
Não entendo nada. Mas reconheço o tipo de dor.
— Quer que eu chame seus amigos? — pergunto, abaixando um pouco pra falar no nível dele.
— Não... por favor... — ele estende a mão e segura meu pulso, firme, mas não agressivo. — Me leva pra casa.
— Pra sua casa?
Ele apenas assente, com dificuldade. A testa suada. Os olhos marejados. O orgulho todo deixado ali, no chão gelado do banheiro do pub.
Suspiro e fico de pé.
— Tá bom. Espera aqui.
Volto ao bar e falo com o gerente. Digo que alguém passou mal, que vou ajudar. Ele bufa, mas não me impede. Meu turno já tinha acabado mesmo. Pego minha bolsa, visto o casaco e volto ao banheiro.
— Vamos — digo, estendendo a mão.
Ele tenta se levantar, falha, e ri de si mesmo. Então eu o ajudo com cuidado. Ele é pesado, mas está mais consciente do que imaginei. Com o braço apoiado nos meus ombros, vamos até o estacionamento.
— Onde está seu carro?
Ele aponta, com o dedo trêmulo, para um Volvo preto. Caminhamos até lá, e eu o ajudo a destravar.
— Você tem certeza de que quer ir sozinho?
— Me leva só até lá… só isso… por favor.
Assinto devagar. Ainda não sei por que estou dizendo sim para um homem que acabei de conhecer — um completo estranho — mas algo nele, no jeito como os olhos dourados ainda ardem mesmo na dor, me diz que ele não é perigoso. Só está... quebrado. Como eu.
— Me dá as chaves — peço, estendendo a mão.
Ele vasculha os bolsos e as entrega sem resistência. Seus dedos roçam os meus por um segundo, e a pele está fria.
— Entra — digo, contornando o carro e abrindo a porta do motorista.
Ele se acomoda no banco do passageiro com dificuldade, encostando a cabeça no vidro como se aquele movimento esgotasse todas as forças que ainda tinha.
Dou partida no carro, e saímos devagar do estacionamento. A cidade segue viva lá fora, cheia de luzes, vozes e caos. Mas dentro daquele carro, tudo parece mais silencioso.
Não trocamos palavra nenhuma.
E, ainda assim, sinto que aquela noite vai mudar alguma coisa.
Não sei o quê.